Limites são inerentes à humanidade. Até que ponto podemos ir, fazer, dizer ou esperar? Quem define o ponto que não podemos atravessar? Nós? As autoridades? A sociedade? Brandon Cronenberg, cineasta canadense, parece estar especialmente interessado nessas questões em seu novo filme, “Piscina Infinita” (2023). O diretor, aliás, parece lidar com limites desde o início de sua carreira. Sendo filho do renomado David Cronenberg, Brandon tem se mostrado um realizador muito seguro ao escolher gêneros e temáticas bastante semelhantes aos explorados por seu pai. É um movimento arriscado, pois o jovem diretor poderia ter sua originalidade ou talento facilmente questionados. Porém, Brandon tem estabelecido um limite muito claro entre sua filmografia, e seus interesses enquanto artista, e o trabalho de seu pai.
Se David Cronenberg se tornou célebre trabalhando o horror corporal, com a presença recorrente de elementos sobrenaturais e uma grande atenção ao sexo e às relações entre a carne e as máquinas, Brandon tem se mostrado um cineasta muito mais frio e racional, tanto na criação de universo quanto na abordagem dada à sexualidade e à violência. Em outras palavras, o mundo e as relações presentes em filmes como “Videodrome – A Síndrome do Vídeo” (1983) e “A Mosca” (1986) parecem quentes, emocionais e, sobretudo, factíveis. Já as realidade mostradas em “Antiviral” (2012), “Possessor” (2020) e “Piscina Infinita” são gélidas, cartesianas e, acima de tudo, artificiais. Não por acaso, a trama do filme mais recente do Cronenberg filho se passa em um país fictício, Li Tolqa. O diretor poderia ter escolhido não nomear o lugar, mas o fato desta não ter sido a decisão apenas reforça o quanto o filme se preocupa com questões como artificialidade, construção e, voltamos a ele, limite.
A produção conjunta de Canadá, Croácia e Hungria segue o casal formado pelo escritor com bloqueio James (Alexander Skarsgård) e sua esposa rica Em Foster (Cleopatra Coleman), que estão desfrutando de um período de férias na ilha de Li Tolqa. A viagem dos dois começa a tomar um rumo inesperado a partir de seu encontro com Gabi Bauer (Mia Goth), uma atriz hospedada no mesmo resort. A partir daí, os personagens são expostos à subcultura perversa do turismo hedonista e precisam lidar com a violência imprudente e os horrores surreais do país.
“Piscina Infinita” parece beber da mesma fonte de “O Silêncio” (1963), cuja trama também está centrada nas experiências insólitas de duas pessoas em um hotel localizado em um violento país fictício. Tal qual Ingmar Bergman, Brandon Cronenberg e seu diretor de fotografia, Karim Hussain (também de “Possessor”), demonstram um grande virtuosismo, que acentua a todo momento a artificialidade que está por trás de sua construção de universo. São recursos da linguagem cinematográfica que não nos deixam esquecer que, assim como tudo aquilo é irreal e fortemente encenado, também o são, para o bem e para o mal, nossas convenções sociais.
Deste modo, um diálogo entre James e Gabi sobre um grupo de pessoas que compartilham do mesmo fetiche (pela própria morte) não é totalmente filmado de maneira convencional, através do plano e contraplano. A certa altura da conversa, à medida que o assunto se torna mais restrito, a câmera passa a enquadrar apenas, em planos-detalhes fechadíssimo, as bocas dos personagens, ao mesmo tempo realçando o nível de confidencialidade da conversa e chamando a atenção para a abordagem cinematográfica em curso. Logo à frente, na reunião do grupo de turistas, novamente a linguagem audiovisual é explicitada. Ao invés de filmar os planos e contraplanos de James, Gabi e os outros, Cronenberg opta por um ostensivo plano-sequência estático combinado a um zoom-in, deixando evidente que, assim como a imagem que estamos vendo, o protagonista está lentamente entrando naquele círculo perverso.
Aliás, o diretor dá indícios, desde o princípio, que James e Gabi terão algum tipo de envolvimento. Logo no primeiro jantar dos Foster com a personagem de Mia Goth e seu marido Alban (Jalil Lespert), os enquadramentos mantêm Gabi e James constantemente se complementando, com um deles preenchendo a porção esquerda da tela e, no plano seguinte, o outro ocupando a metade direita.
Porém, se os personagens se completam no quadro, a dupla de atores não tem a mesma sintonia. Alexander Skarsgård dá vida ao personagem de forma mecânica até demais, recaindo no mesmo problema que Andrea Riseborough enfrenta (embora em muito menor grau) em “Possessor”. É difícil nos importarmos com aqueles personagens porque não parece haver uma evolução (ou melhor, uma involução) ao longo da narrativa. O filme anterior do diretor tenta ensaiar uma progressão emocional para sua protagonista, mas, em “Piscina Infinita”, seja em parte pelo roteiro de Cronenberg ou integralmente pela interpretação de Skarsgård, James Foster parece terminar o filme tão apático e inerte quanto começou. O ator só não está pior do que Cleopatra Coleman, que consegue tornar sua personagem tão irritante que sua saída abrupta do filme poderia ser motivo para comemoração.
Já Mia Goth, apesar de bem melhor, ainda transmite um certo ar caricatural, que não deixa de combinar com a profissão de sua personagem, mas também torna difícil qualquer tipo de disfarce de suas reais intenções. Ou seja, desde o início, quando James e Gabi se conhecem, sabemos muito bem que ela não é nada daquilo que aparenta ser, o que não seria um problema, não fosse a tentativa do roteiro de surpreender em seu ato final com a “revelação” da verdadeira natureza vilanesca da personagem.
O roteiro de “Piscina Infinita”, a propósito, tem alguns problemas bastante evidentes. Em primeiro lugar está a própria concepção elaborada por Cronenberg. Se em “Possessor” a protagonista se vale da tecnologia inventada pelo filme simplesmente para trabalhar, os personagens do mais recente longa do diretor cometem crimes apenas pelo prazer de verem a própria morte. Mas, qual a razão de ser arriscar em um país supostamente muito perigoso e violento apenas para contemplar, reiteradas vezes, o assassinato de si próprio? Apesar de ser um claro comentário sobre a impunidade dispensada aos ricos e poderosos e também acerca da busca incessante pelo prazer, trata-se de uma premissa que não para de pé e que, sobretudo, parece rocambolesca demais para, mesmo a nível ficcional, ser minimamente factível. Além disso, em momento algum fica claro se as experiências de tecnologia altamente avançada desenvolvidas naquele país são realmente restritas ou amplamente conhecidas, seja pelos nativos ou pela comunidade internacional, afinal as pessoas publicamente condenadas logo estão livres e vagando sem nenhum impedimento. Assim como os personagens, o filme parece não se importar muito com os habitantes do país, já que vemos pouco ou quase nada de sua cultura.
O que de fato vemos, além da conta, são os efeitos visuais que Cronenberg tanto adora colocar em seus filmes. Em termos imagéticos, “Piscina Infinita” é muito mais ostensivo do que o longa anterior do cineasta. Temos nada menos que três extensas sequências de montagem rápida, variação cromática intensa e distorções ópticas, que entram no momento da primeira clonagem e nas cenas em que o protagonista está sob efeito da droga oferecida pelo grupo de Gabi ou escondido de seus perseguidores. Confesso que, embora sejam expedientes impactantes e esteticamente sempre interessantes, Brandon Cronenberg acaba exagerando bastante na medida, até mesmo quando pensamos em seu trabalho anterior. Em termos comparativos, pensemos o quanto o final de “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), por exemplo, seria muito menos marcante se Stanley Kubrick tivesse mostrado outras vezes, antes, a nunca igualada sequência do “Portal das Estrelas”.
Mas, se Cronenberg se perde brincando com os efeitos visuais já constantes em sua filmografia, o mesmo não se pode dizer do sexo e até mesmo da violência. Em “Piscina Infinita” ‒ pelo menos na versão lançada nos cinemas e streaming, à qual a quase totalidade do público teve acesso ‒ o realizador está visivelmente mais comedido do que em “Possessor”, talvez pelos nomes de peso no elenco. Sendo assim, a única cena mais direta que o diretor nos apresenta é também a mais efetiva. Logo nos primeiros instantes de interação entre James e Gabi, Cronenberg nos surpreende com uma cena construída apenas a partir da montagem, mostrando a personagem estimulando sexualmente o protagonista e o resultado fisiológico do contato entre os dois. Todavia, mais à frente o filme traz uma cena de orgia que é, ironicamente, bastante comedida, já que pouco ou quase nada do que está acontecendo é realmente inteligível em função da montagem e da cinematografia adotadas. Sem dúvida uma pena, para um diretor que já mostrou tanta habilidade e sobretudo disposição para filmar diretamente o sexo em suas facetas mais eróticas e desconcertantes.
“Piscina Infinita”, apesar dos acertos e da proposta conceitual diferente, acaba se perdendo em suas limitações. O filme tenta avançar ao infinito, mas se mostra com pouco fôlego para sustentar e desenvolver suas peculiaridades. O próprio longa, em uma cena absolutamente deslocada, resgata Thomas Hobbes para concretizar sua célebre máxima segundo a qual “O homem é o lobo do homem”. Aqui, é Brandon Cronenberg quem acaba se tornando o exemplo ideal. Ao tentar ir tão longe, o realizador acaba se perdendo em seus próprios limites. Não nos esqueçamos, que até mesmo as piscinas infinitas terminam em algum ponto. ■
filme piscina infinita
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PISCINA INFINITA (Infinity Pool, 2023, Canadá, Hungria, Croácia). Direção: Brandon Cronenberg; Roteiro: Brandon Cronenberg; Produção: Karen Harnisch, Andrew Cividino, Christina Piovesan, Noah Segal; Fotografia: Karim Hussain; Montagem: James Vandewater; Música: Tim Hecker; Com: Alexander Skarsgård, Mia Goth, Cleopatra Coleman, Jalil Lespert; Estúdio: Celluloid Dreams, Telefilm Canada, Eurimages, Elevation Pictures; Distribuição: Universal Pictures; Duração: 1 h 58 min.
filme piscina infinita
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Onde ver "Piscina Infinita" no streaming:
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.