“Os brancos dormem muito, mas só sonham com eles mesmos”.
(Davi Kopenawa, xamã, pensador e escritor yanomami)
“Ao longo da história, os humanos, aliás, esse clube exclusivo da humanidade — que está na declaração universal dos direitos humanos e nos protocolos das instituições —, foram devastando tudo ao seu redor. É como se tivessem elegido uma casta, a humanidade, e todos que estão fora dela são a sub-humanidade. Não são só os caiçaras, quilombolas e povos indígenas, mas toda vida que deliberadamente largamos à margem do caminho. E o caminho é o progresso: essa ideia prospectiva de que estamos indo para algum lugar. Há um horizonte, estamos indo para lá, e vamos largando no percurso tudo que não interessa, o que sobra, a sub-humanidade — alguns de nós fazemos parte dela.”
(Ailton Krenak, Imortal da Academia Brasileira de Letras)
No momento em que escrevo esse texto, sinto que ainda não me recuperei da sessão de “Assassinos da Lua das Flores”. Além das 3h e meia de filme sentidas com profunda intensidade emocional, a experiência reverbera como um processo em andamento. Eu continuo na dor e na luta do povo Osage e, principalmente, de uma de suas filhas, a Mollie Burkhart. E isso só é possível porque, neste novo filme, sabiamente, Martin Scorsese coloca em prática a chamada alteridade.
Mesmo narrando a partir da perspectiva dos algozes homens brancos (afinal, Scorsese compreende o que é lugar de fala e como fazer bom uso dele), a centralidade da mulher indígena e de sua comunidade é mantida do início ao fim, com respeito e autenticidade. A noção e o reconhecimento do outro se faz pela relação com a diferença. E, ainda que seja sobre um tempo, um lugar e um crime histórico dos Estados Unidos, há cem anos atrás, tudo se conecta à grande e sempre aberta ferida colonial do nosso mundo.
Produção Apple Original Films, em parceria com a Paramount Pictures, o longa-metragem de ficção é baseado em acontecimentos reais. A partir do livro homônimo de David Grann, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, Scorsese coescreve o roteiro ao lado de Eric Roth e traz para o cinema, de maneira arrebatadora, o retrato de um genocídio indígena que também é um dos primeiros casos de homicídio investigados pelo FBI, quando a organização foi criada por J. Edward Hoover. Trata-se dos assassinatos em série de membros dos Osage, povos nativos estadunidenses, em Oklahoma, no início da década de 1920.
Os Osage foram expulsos de seus territórios de origem, sendo deslocados para Oklahoma, uma região considerada, até então, sem valor. Mas, algum tempo depois, foi descoberto petróleo no local e, assim, os Osage enriqueceram por serem os proprietários das terras. Uma riqueza que, obviamente, incomodou. Não à toa, na cena em que alguns jovens indígenas são banhados em óleo que irrompe da terra, esse óleo se confunde, aos nossos olhos, com sangue negro. Síntese do horror que virá adiante, pela ganância e, principalmente, pelo projeto de poder de homens brancos, conspirando e agindo de maneira vil para se apossarem da fortuna dos Osage e, aos poucos, eliminarem a comunidade nativa.
Tudo começa com a bela, triste e intimista sequência inicial de um ritual indígena. Ele abre os caminhos da história a ser contada ao mesmo tempo que estabelece melancolia ancestral, em contraste com o êxtase em slow-motion do jorro de petróleo de mais adiante. Em seguida, o filme faz uso de cartelas, fotografias de arquivo e trechos de imagens em preto e branco, como em um antigo cinejornal, para uma breve contextualização sobre a mudança radical na vida dos Osage. Mas, logo, o preto e branco dão lugar às cores para sermos apresentados ao protagonista, Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio, impressionante), que retorna da guerra para trabalhar com seu tio latifundiário, William Hale (Robert De Niro, em uma de suas performances mais geniais).
Hale se autoproclama “Rei” da cidade de Fairfax, sendo um homem poderoso e que controla a região com seu modus operandi de lobo em pele de cordeiro. Enquanto espectadores e espectadoras atentas, tão logo o conhecemos já percebemos sua dissimulação. Ele vê os indígenas como seres inferiores, uma “sub-humanidade”, mas se disfarça como um aliado gentil. Ao longo da narrativa, sua malícia é escancarada em cada ato bem calculado, na constante vigilância do que acontece ao seu redor, na facilidade com que manipula pessoas e trama crimes, sempre mantendo “as mãos limpas”, a boa imagem e a posição de autoridade, com o apoio do governo e polícia locais, em via dupla de benefícios.
Numa espécie de contaminação lenta e letal, é instaurado, pela branquitude, um sistema de roubo, apropriação, epistemicídio e política de morte, cujas bases capitalistas estão em leis restritivas que impedem o acesso total dos indígenas à sua própria fortuna e na formação de famílias inter-raciais. Os casamentos entre brancos e indígenas são usados estrategicamente pelos brancos como um meio legal para a posse de corpos e patrimônios do povo nativo. A herança é o objetivo e, portanto, as pessoas indígenas são mortas uma a uma, segundo a linha de sucessão, seja por doença provocada por envenenamento ou pelo assassinato frio e direto. Gradativamente, o filme nos entrega quem são os criminosos e como agem, não havendo interesse em criar qualquer suspense “whodunit”, mas, sim, em nos fazer vivenciar o incômodo e toda a tensão de saber tudo, enquanto assistimos pessoas inocentes que nada sabem. Angustiante.
Mollie (Lily Gladstone, sublime) é uma mulher indígena solteira, que transparece sabedoria e segurança de si. Ela cuida de Lizzie Q (Tantoo Cardinal), sua mãe viúva e adoecida, que não esconde a expressão de cansaço e desgosto. Adentramos sua casa, entendemos um pouco mais dos costumes e valores Osage, a relação com a matriarca e as irmãs e a integração com a natureza – ainda que a cidade tenha sido tomada por um modo de vida que desconsidera a coexistência. É com as mulheres da família de Mollie que temos mais vislumbres da cosmovisão indígena. Essa cosmovisão está incorporada organicamente, sem estereótipos folclóricos, de exotização ou estranheza, como na contemplativa cena em que Lizzie Q falece, sendo levada por seus ancestrais.
Mollie conhece Ernest quando este lhe presta serviços de táxi. Passado algum tempo, Hale aconselha seu sobrinho sobre o casamento com Mollie, a quem ele classifica desumanamente como “puro sangue”. A partir de então, Ernest se aproxima mais de Mollie e, nessa ambiguidade, a relação do casal é desenvolvida. Mollie se sente atraída por Ernest, mesmo sabendo que “o coiote quer dinheiro”, como ela mesma diz. Ela enxerga nele algo de quietude e simplicidade, com o qual se identifica. E, assim, baixa a guarda, se permite envolver.
Aos poucos, acreditando em um amor em meio ao caos, Mollie forma uma família com ele. Mas qualquer resquício de amorosidade de Ernest por sua esposa se torna irrelevante diante das atrocidades que ele comete, manipulado por seu tio e entorpecido pelo desejo de riqueza e por um ideal de masculinidade dominadora. Ele chega a dizer que ama Mollie e a considera uma “verdadeira dama”, mas o que ele faz (ou deixa de fazer por ela) vai contra o que ele diz. Então, deixo a questão: esse amor é, de fato, sentido? Já que não se torna verbo, não é uma ação e nem mesmo proteção, esse amor existe?
A complexidade funesta de Ernest, refletida na tensão muscular de seu corpo e face, é perturbadora. Se por um lado ele se mostra tolo, submisso às ordens do tio e amedrontado, por outro é também uma pessoa que busca o conforto de uma auto ilusão, dissociando-se da consciência de culpa que carrega e dissociando-se da realidade de seus atos e negligências, para não lidar frontalmente com quaisquer responsabilidades. Ele segue o que seu tio lhe determina, mesmo que isso signifique sua desintegração moral, enganando a esposa que diz amar e tramando contra ela para a morte de seus entes queridos – e até mesmo a dela. Um homem fraco e corrompido, cuja consciência expõe ainda mais sua humanidade falha e torpe.
Em contraste à decadência do homem, a grandeza, inteligência e força de Mollie são gigantes, até nas sutilezas, nos silêncios, nas poucas palavras trocadas, gestos e, especialmente, nos olhares. Ela se mantém firme e íntegra, apesar de tudo que enfrenta a fragilizar e a adoecer fisicamente cada vez mais. Há espaço para sentirmos que o filme poderia ser mais sobre ela e sua perspectiva do que sobre seu traidor. Mas esse sentimento é também mérito do filme, pela minuciosa construção da personagem e por nos fazer perceber a necessidade de mais histórias contadas pelo ponto de vista do oprimido, de quem sempre esteve à margem.
Mestre em investigar sobre masculinidade, disputas de poder, princípios de fé e honra, corrupção e violências, Scorsese aposta em uma reimaginação ou repaginação do cinema faroeste e policial, transitando por e subvertendo códigos de ambos os gêneros – entre caubóis, xerifes, indígenas, famílias, esquemas, investigações, paisagens, até mesmo o romance improvável, e tantos elementos típicos – para revelar o que essas narrativas invisibilizaram e para questionar mitos, arquétipos e símbolos criados em torno do Oeste estadunidense e do projeto civilizatório (sangrento) do país. A menção ao massacre de Tulsa, ocorrido na mesma época e na mesma Oklahoma contra a população negra, estabelece conexão importante para melhor compreensão de todo o racismo nesse processo.
Quando os crimes finalmente começam a ser desvendados pela equipe da recém-criada FBI, o agente Tom White (Jesse Plemons) poderia figurar como salvador branco -“white savior“, no original – mas o tropo é controvertido principalmente pela fala dos líderes indígenas explicitando que a operação do FBI só acontece porque eles pagaram uma quantia significativa de dinheiro ao governo dos EUA. São brancos fazendo o certo, mas não sem antes terem garantido um favorecimento econômico. Com o FBI na área, então, acompanhamos a queda de cada integrante da “máfia” genocida – os assassinos são expostos e levados à Justiça. Momento em que o filme se veste de drama de tribunal, sendo o testemunho de Ernest diante de Mollie e a conversa dos dois que acontece em seguida, cenas tão densas que tiram nosso fôlego. É um ápice dramático que conclui a impossibilidade dessa relação.
Mas há ainda a impossibilidade de resolução para o próprio filme, visto que essa narrativa também é sobre um sistema de branquitude que não acabou. Muito pelo contrário, persiste e se molda aos tempos correntes. Então, “Assassinos da Lua das Flores” busca como alternativa aos tradicionais letreiros que informam sobre o destino das personagens, um último e contundente comentário na encenação de uma peça de programa de rádio típica dos anos 1960. Dramatização, narração, interpretação, sonoplastia… Tudo realizado por pessoas brancas – nenhum nativo participa. A audioficção true crime invade a tela, levando-nos a refletir sobre a indústria de entretenimento e tecnologias midiáticas que exploram crimes e sofrimentos reais como espetáculo, além de forçarem apagamentos históricos e as subrepresentações que lhes convém. O próprio Scorsese reconhece-se como uma parte dessa estrutura, sem cair no clichê de mea culpa, aparecendo como um dos atores dessa peça: ele lê, com tristeza e olhos marejados, o obituário de poucas linhas sobre Mollie Burkhart. E o público também é retratado, em sua confortável passividade diante do que assiste.
Ao nos imergir nas dinâmicas e relações, “Assassinos da Lua das Flores” detalha o genocídio indígena pela insídia dos algozes, nas nuances e pormenores de cada discurso e comportamento, nas máscaras e monstruosidades de supremacistas brancos. E nessa imersão, a montagem precisa da colaboradora de longa data de Scorsese, Thelma Schoonmaker, é fundamental, evidenciando contrastes e facilitando o entendimento sobre o caráter das personagens. Destaque ainda para a fotografia de Rodrigo Pietro e o figurino de Jacqueline West, que constroem ambientação e camadas interpretativas poderosas. “Nosso manto é como um alvo”, diz uma irmã Osage… Mas é também um marca de integridade, em meio a tanta distorção.
A violência perversa e sistemática daquele cotidiano de horror banalizado é descrita em seus processos brutais, dos mais lentos e íntimos (chegando a se misturar com os vínculos afetivos) aos mais pragmáticos e explícitos, quando balas atravessam corpos. Definitivamente, não tem como sair dessa sessão sem não sentir o peso de tudo que se acompanhou, sem pensar na origem e atualidade dos territórios que ocupamos e sem reconhecer que, mais uma vez, Scorsese se reinventa e nos agracia com paixão pela arte. Arte corajosa, que toca em feridas, que deixa sua marca. Uma marca dolorosa, pois é preciso fazer doer.
Editora, crítica de cinema e podcaster do Cinematório. Filiada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e membra do Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Jornalista profissional pela UFMG e com formação em Produção de Moda pela mesma instituição. É cria dos anos 90 e do interior de Minas.