Stanley Kubrick, Brian de Palma, Tobe Hooper, George A. Romero, David Cronenberg e John Carpenter. O que esses diretores têm em comum, além de serem grandes cineastas? O fato de que todos eles, em algum momento da carreira, dirigiram um (ou mais de um) filme baseado na obra de Stephen King.
De todos estes realizadores, talvez John Carpenter tenha ficado com a tarefa mais difícil. Afinal, como transpor para a tela grande, de forma convincente, a história de um carro com instinto possessivo e assassino? Carpenter prova, porém, que um diretor habilidoso consegue contar até mesmo a mais esdrúxula das histórias de modo verossímil e inventivo. E, com isso, temos o formidável “Christine, o Carro Assassino” (1983), feito apenas 1 ano após aquela que alguns consideram a obra-prima do diretor, “O Enigma de Outro Mundo”. Também em 1983, seriam lançados “Cujo” e “Na Hora da Zona Morta”, outras duas adaptações de Stephen King para o cinema. E Carpenter criaria outras obras hoje cultuadas nos anos seguintes. “Christine” marca então o encontro de dois grandes autores em trajetória ascendente de criatividade.
O longa segue as mudanças na vida do adolescente Arnie Cunningham (Keith Gordon), depois que ele compra o clássico Plymouth Fury 1958 vermelho e branco, que dá nome ao filme. O carro passa então a desenvolver vontade própria e uma personalidade ciumenta, que influenciam negativamente Arnie e sua relação com todos que estão à sua volta.
É impossível falar de “Christine” sem chamar a atenção para a trilha musical do filme. Embora o romance de King (publicado mais cedo naquele ano de 1983) já dê grande protagonismo às músicas (com cada capítulo abrindo com um excerto de canção), John Carpenter faz aqui talvez um dos melhores usos de letras musicais que eu me lembre. Isso porque, para além de reforçar elementos centrais da trama, as músicas ainda ganham valor explicitamente narrativo, tornando-se indispensáveis para o andamento da história. O cineasta já começa este exercício na primeira cena do filme, que mostra Christine sendo montada na fábrica. Mal a cena se inicia e já somos introduzidos à canção “Bad to the Bone” (algo como “Mal até o Osso”), da banda George Thorogood and the Destroyers. É uma forma infalível de revelar ao público, sem diálogos, a natureza maligna do veículo que estamos vendo em tela, destacado dos outros na linha de montagem tanto pelo enquadramento quanto pela característica cor vermelha (à qual voltarei mais tarde).
Mais tarde, temos outro exemplo de uso discursivo da música, desta vez diegética. Dennis Guilder (John Stockwell, em ótima performance), melhor amigo de Arnie, está cada vez mais intrigado com o carro e resolve ir até a oficina onde o veículo está guardado, na tentativa de descobrir algo. Ao chegar lá, ele tenta abrir a porta de Christine, mas é subitamente interrompido quando o rádio do carro começa a tocar “Keep A-Knockin”, de Little Richard, com versos que repetem insistentemente o refrão, “Keep a knockin’, but you can’t come in” (“Continue batendo, mas você não pode entrar”). Dennis sai do local assustado, compreendendo, assim como o público, o recado de Christine. Carpenter consegue aqui algo que é essencialmente cinematográfico: atribuir senciência a um elemento inanimado. Entendemos o que um carro quer apenas pela escolha da música reproduzida em seu rádio. É como se Christine ganhasse vida em frente aos nossos olhos. O diretor transforma uma premissa irreal e que poderia soar ridícula ou grotesca em algo eficaz, através de um recurso econômico e simples, mas indispensável. Afinal, tanto a sequência de abertura quanto esta cena mais à frente no filme perderiam totalmente em efeito e sentido, não fosse a escolha por contar a história também por meio da trilha musical.
Mas John Carpenter não se vale apenas das canções para dar vida ao enredo. A cor ‒ vermelha ‒ ganha um papel também fundamental. A começar pelo fato da própria Christine ter a lataria pintada de vermelho vivo. Vermelho que alude ao sangue, mas também à paixão. Porém, o mais interessante vem à medida que Arnie começa a ter sua personalidade modificada pelo convívio com o carro. O personagem passa então a usar sempre uma peça ostensivamente vermelha no figurino, seja ela uma camisa ou um colete, principalmente nos momentos em que está longe do veículo. É uma maneira sem dúvida óbvia, mas nem por isso menos visualmente eficiente, de nos mostrar a dominância de Christine sobre o protagonista, algo que também é reforçado através do uso da lente grande angular (marca registrada dos filmes de Carpenter), que destaca o centro do quadro e distorce as bordas, ao mesmo tempo dando mais destaque a Christine e criando também um bem-vindo senso de estranheza nas imagens que vemos em tela. O público é confrontado com simbologias inequívocas, já que o vermelho característico de Christine permanece com Arnie mesmo nos momentos em que o carro não está em tela e, quando aparece, Christine domina o espaço mais privilegiado do quadro.
Aliás, talvez um dos mais perturbadores elementos do filme seja a relação, quase psicossexual, de Arnie com Christine. Já na gênese literária a história não deixa de ser uma espécie de perversão de “A Bela e a Fera”. Porém, o caráter desconcertante da relação entre o protagonista e o carro se torna ainda mais evidente na transposição do romance para a tela, na medida em que Carpenter filme a premissa de um modo absolutamente sóbrio, tornando o conceito plausível. Também auxilia o fato de este ser um filme acerca de adolescentes em pleno período de despertar sexual ‒ algo que é bastante ressaltado pelos diálogos entre Arnie e Dennis ‒, de modo que a obsessão de Arnie por Christine representa também a pulsão do jovem por uma primeira experiência sexual, que ocorre simbolicamente com Christine ‒ na cena em que ela se regenera do vandalismo sofrido pelos bullies de Arnie ‒, mas que nunca vemos acontecer com Leigh (Alexandra Paul), justamente a namorada humana do personagem.
A construção da relação de Arnie com Leigh é, possivelmente, o único grande ponto fraco do filme, um (anti)mérito do roteirista Bill Phillips. O início do namoro é introduzido sem preparo algum, exceto por uma recusa da personagem de sair com Dennis, algo que na verdade poderia ser atribuído a qualquer outra razão. Da mesma maneira, ela e o melhor amigo de Arnie se unem no fim do filme para derrotar Christine, mas esta parceria é pouquíssimo preparada. Tudo isto é naturalmente mais bem trabalhado no livro, que dispõe de muitas páginas para criar estes múltiplos vínculos. Porém, com mais duas ou três cenas ou mais cinco minutos de desenvolvimento, o enredo do filme poderia ter estruturado melhor esta progressão, de modo que as ações dos personagens não parecessem abruptas e truncadas.
Felizmente esta falha na construção do roteiro é pontual, e impacta pouco no saldo final da obra. “Christine” é a prova definitiva de que o cinema é capaz de dar um verniz de realidade mesmo à mais irreal das premissas. É também uma das mais bem-sucedidas adaptações de Stephen King para o cinema. Para a sorte do mestre do terror literário, “Christine” marca sua convergência com o mestre do terror cinematográfico. Para a sorte de ambos, a estrada foi o palco para este grande encontro. ■
filme christine o carro assassino
filme christine o carro assassino
CHRISTINE, O CARRO ASSASSINO (Christine, 1983, EUA). Direção: John Carpenter; Roteiro: Bill Phillips (baseado no livro de Stephen King); Produção: Richard Kobritz, Larry J. Franco; Fotografia: Donald M. Morgan; Montagem: Marion Rothman; Música: John Carpenter, Alan Howarth; Com: Keith Gordon, John Stockwell, Alexandra Paul, Robert Prosky, Harry Dean Stanton; Estúdio: Delphi Premier Productions, Polar Film; Distribuição: Columbia Pictures; Duração: 1 h 40 min.
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