"Pedágio" (2023), de Carolina Markowicz - Foto: Divulgação
"Pedágio" (2023), de Carolina Markowicz - Foto: Divulgação

“Pedágio”: Quanto custam nossos direitos?

Ir e vir é um direito básico. Mas o custo é alto. Seja nos ônibus, carros de aplicativo, o preço da gasolina ou os pedágios que existem nas estradas país afora. Existir e se expressar livremente também são direitos primordiais. Entretanto, alguns grupos pagam um preço elevado por eles. Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero e outras tantas identidades e orientações não custam pouco às pessoas que precisam se reafirmar diariamente. Afinal, quanto custam nossos direitos?

Esta parece ser a principal questão suscitada por “Pedágio” (2023), novo filme da diretora, roteirista e produtora paulista Carolina Markowicz, responsável pelo excelente “Carvão” (2022). No longa, que fez parte das prestigiadas seleções do Festival de San Sebastián e do Festival de Toronto, acompanhamos Suellen (Maeve Jinkings), cobradora de um pedágio, que mantém uma relação conflituosa com o filho, Antônio “Tiquinho” (Kauan Alvarenga), em função da orientação sexual do adolescente. Porém, a vida de ambos passa por mudanças irreversíveis a partir do momento em que a protagonista se envolve em um esquema criminoso para custear a “terapia de cura gay” do jovem.

“Pedágio” já começa deixando bem claro a razão de ser de seu título, tanto um aceno à profissão da personagem principal quanto uma alegoria para as resistências que o filho tem de enfrentar para viver sua sexualidade. Não são poucas as vezes que Suellen repreende Tiquinho por trajar roupas femininas, usar maquiagem e gravar vídeos dublando canções de Billie Holiday. A protagonista oferece diversas justificativas, porém fica evidente que ela sente vergonha do filho, do que ele representa e de tudo o que as pessoas de seu entorno podem pensar e dizer a seu respeito. Não nos esqueçamos que “Pedágio” foi concebido e filmado ao longo de um governo de extrema-direita, cujo principal saldo no plano sociocultural talvez tenha sido promover um encontro do Brasil consigo mesmo. Em outras palavras, fomos apresentados, nos últimos anos, a um país repleto de preconceitos, violências e hipocrisias. Não que tudo isso não seja histórico e estrutural do Brasil, mas há décadas não confrontávamos de forma tão intensa esse estado de coisas.



“Pedágio” traz, assim como “Carvão”, um olhar muito cru para aquilo que há de mais incômodo em nossas relações sociais. E para isso, talvez o elemento mais importante do filme de Carolina seja a direção de arte, assinada por Vicente Saldanha. Considero o design de produção aqui tão desafiador quanto o do mais suntuoso filme de época. Isso porque nossa imersão na premissa só se torna possível a partir do momento em que identificamos a casa de Suellen, os móveis, os objetos pessoais e profissionais e o ambiente de trabalho como sendo críveis e próximos da nossa própria realidade. Há aqui um enorme cuidado não no sentido de imitar, mas sim de recriar nos mínimos detalhes a casa, a escola e o local de trabalho de uma família de baixa renda residente em uma metrópole brasileira.

Desde a panela gasta, a capa de sofá ou o lençol pendurado no varal da casa da protagonista, até o bar onde ela bebe com o companheiro, Arauto (Thomas Aquino), ou o restaurante onde almoça com a colega de trabalho, Telma (Aline Marta Maia), todo o design de produção é bem-sucedido em imprimir realismo àquele universo, condição indispensável para que compremos os elementos de absurdo que serão introduzidos na trama posteriormente. Crédito também para o diretor de fotografia, Luis Armando Arteaga, que compõe quadros nos quais a profundidade de campo valoriza a interação entre dois ou mais personagens e entre eles e o ambiente.

Entretanto, o realismo é contraditoriamente jogado de lado justamente com a personagem Telma, um poço de incongruências. Ela se declara evangélica, mas não hesita em trair o marido publicamente com diversos motoristas que passam pelo pedágio. Notem, o problema não está na hipocrisia da personagem, mas sim no quão ilógica e estúpida é sua conduta. É evidente que pessoas evangélicas, como todas as outras, podem ser hipócritas. O que não quer dizer, porém, que elas serão tolas a ponto de expor seus segredos literalmente à luz do dia. Falta aqui um entendimento talvez mais refinado acerca do ideário evangélico. A realidade deste grupo religioso no Brasil é muito mais complexa do que a caricatura de uma fiel ninfomaníaca pouco cuidadosa.

Para além disso, Aline Marta Maia parece, para o bem e para o mal, estar reprisando sua personagem em “Carvão”. É o mesmo estilo de atuação, com a mesma movimentação corporal, a mesma entonação de voz e os mesmos olhares. A intenção até pode ser construir a figura interpretada pela atriz como uma espécie de “mensageira do Apocalipse”, sempre a responsável por trazer propostas extremas para as protagonistas. O que transparece, entretanto, é uma má vontade de dar à atriz algum papel mais desafiador e que fuja do já construído estereótipo que temos associado a ela.

"Pedágio" (2023), de Carolina Markowicz - Foto: Divulgação
“Pedágio” (2023), de Carolina Markowicz – Foto: Divulgação

Mas quem definitivamente não sofre do mesmo problema é Maeve Jinkings Em parte pelo roteiro, que fornece à intérprete uma personagem repleta de nuances, ora vítima de todo um contexto socioeconômico que lhe é hostil, ora algoz do filho, tão vulnerável quanto ela. Suellen é muito similar a Irene, protagonista de “Carvão”, mas ao mesmo tempo suficientemente diferente para ser entendida como uma pessoa real. Há algumas mudanças muito perceptíveis aqui, como por exemplo o sotaque, o cansaço urbano impresso nos olhos, na voz e no corpo da personagem, e a progressiva violência homofóbica que ela direciona ao filho.

O destaque na atuação, não poderia deixar de ser, fica por conta do olhar da atriz, essencial para transmitir todos os sentimentos que passam por ela ao longo do filme. A vergonha que Suellen sente pela sexualidade do filho está estampada em seu rosto ao longo do primeiro terço do filme; depois, o medo de que seu esquema criminoso seja descoberto passa a alternar com o gozo pelas vinganças diárias que seu companheiro aplica aos clientes que a humilham no trabalho; e, por fim, talvez na cena mais forte do filme (e que erroneamente não fecha o longa), vemos o arrependimento, a mágoa, a raiva e tantas outras emoções se combinarem na face da personagem, quando ela finalmente vê o filho em um palco e (talvez) sente vergonha de si mesma, dando-se conta de que a “terapia de cura gay” pode ter sido o erro mais cruel que já cometeu em sua relação com o jovem.

Aliás, é nos momentos em que introduz mais diretamente o processo “terapêutico” que o roteiro, também de Carolina Markowicz, realmente mostra uma maturidade e, principalmente, uma inventividade que o torna marcante. Compreendendo o absurdo de qualquer tipo de “cura gay”, a cineasta parte para um registro de sátira. Vemos então sessões nas quais os “internos” da “clínica” precisam transformar pênis em vaginas (e vice-versa), ou beberem extratos pasteurizados da genitália do sexo biológico oposto. É tudo tão desconexo e irreal que até o mais conservador dos espectadores não resistirá a rir, enquanto questiona o quão bizarro são aqueles procedimentos do “tratamento”. Este é o ponto central da sagacidade do roteiro: a partir do absurdo, o público se questiona acerca da própria nulidade da premissa de mudar a orientação sexual ou a identidade de gênero de alguém.

O roteiro também se prova muito bem escrito quando avaliamos o que não está em foco, mas aparece nas entrelinhas. É o caso do olhar sobre o trabalho e sobre os dilemas enfrentados por mulheres com companheiros disfuncionais, dois temas que também estão em “Carvão”, mas em outra chave. Em “Pedágio”, Suellen é uma trabalhadora urbana, de uma metrópole, que precisa lidar com diferenças de classe, com a pobreza e com um namorado que pouco contribui com as despesas da casa e usa a residência para guardar os resultados de seus crimes. Apesar de não ser exatamente sobre isso, “Pedágio” deixa evidente também um quadro desolador, de uma classe trabalhadora cuja renda, a mente e as perspectivas estão sufocadas pelo neoliberalismo.

Em termos de estrutura, o enredo é conduzido com segurança, de modo que todas as ações, por mais que sejam consequências de outras ações, são também subversões das expectativas da protagonista e de nós, o público. Por um lado, Suellen descobre que o namorado está envolvido em roubos, e é ao produto criminoso deles que ela se volta para pagar o “tratamento” de Tiquinho, sofrendo uma consequência que, se não inesperada, rearranja totalmente a balança moral que ela acreditava estar equilibrada. Por outro lado, Tiquinho, na “terapia”, conhece alguém que o levará justamente a resistir à violência daquele colonização. E temos ainda o pastor, figura que mudará o rumo da vida de Suellen de uma maneira que ela não esperava, novamente em uma quebra radical dos valores morais que o filme vinha estabelecendo para o personagem até então.

O pastor Isac (Isac Graça), a propósito, é mais um dos tantos acertos do filme. Nem tanto pela interpretação do ator, mas sim pela escolha do roteiro de fazer do personagem um português Por isso usei, acima, o termo “colonização”. Aproveitando da coprodução lusitana, o longa escolhe colocar um ator português justamente no papel de alguém que irá impor uma identidade normativa a um grupo de pessoas. Se antes, aos indígenas e africanos, agora às pessoas LGBTQIAP+. As simbologias não param por aí. Afinal, por que o companheiro de Suellen e seu comparsa roubam especificamente relógios? Talvez em referência ao tempo perdido por Tiquinho e tantas outras pessoas ainda obrigadas por suas famílias e pela sociedade a viverem vidas incompletas e reprimidas. Essas e outras sutilezas do filme contribuem para que, além de seu discurso satírico mais evidente, a trama traga também reflexões menos óbvias, mas tão importantes quanto o que está destacado.

“Pedágio” demonstra a habilidade que Carolina Markowicz tem de observar, analisar e se posicionar diante do contexto macrossocial em que está inserida. O filme certamente terminaria de forma mais climática caso encerrasse na visita de Tiquinho à mãe, ou especialmente depois, com o close-up de Suelle assistindo à apresentação do jovem. Os montadores Lautaro Colace e Ricardo Saraiva, também colaboradores da diretora em “Carvão”, parecem indecisos na definição de quando cortar, deixando o filme com pelo menos três possibilidades de final e escolhendo a mais fraca delas. Contudo, ainda assim, “Pedágio” constrói uma história interessante, com dramas bem escritos, uma ambientação irretocável e elementos cômicos que servem precisamente à proposta discursiva do filme. Se os pedágios da vida e do cinema nos obrigam a dar algo de valor em troca, Carolina Markowicz nos faz parar cobrando apenas a reflexão: Afinal, quanto custam nossos direitos? ■

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Nota:

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PEDÁGIO (2023, Brasil). Direção: Carolina Markowicz; Roteiro: Carolina Markowicz; Produção: Karen Castanho, Luís Urbano, Bianca Villar, Fernando Fraiha, Sandro Aguilar; Fotografia: Luis Armando Arteaga; Montagem: Lautaro Colace, Ricardo Saraiva; Música: Filipe Derado; Com: Maeve Jinkings, Kauan Alvarenga, Thomás Aquino, Aline Marta Maia, Isac Graça; Estúdio: Biônica Filmes, O Som e a Fúria; Distribuição: Paris Filmes; Duração: 1 h 40 min.

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