Talvez o aspecto mais interessante dentro do cinema documental seja o quanto as histórias podem sair de absolutamente qualquer lugar. Bons e boas cineastas, então, são aqueles que, entre outras habilidades, conseguem olhar com interesse tanto para fatos históricos, personagens célebres ou situações inusitadas quanto para aquilo que é completamente usual a qualquer pessoa. O que vemos todos os dias, mas nos é tão natural que pouco nos provoca a refletir, questionar ou interpelar. Aquilo que, embora cotidiano, está sempre ali, rico em possibilidades, quase à espera de ser capturado pelo cinema.
Rachel Daisy Ellis, diretora nascida no Reino Unido e naturalizada brasileira, demonstra compreender isso de forma madura já em seu primeiro longa-metragem, “Eros” (2024). O filme ‒ que estreou como o último da Aurora, na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes ‒ surgiu a partir justamente desse impulso primordial da artista ao chegar ao Brasil em 2004 e se deparar com um sem-número de motéis espalhados por toda parte: “Tem algo ali”, ela conta ter pensado.
O documentário pernambucano acessa a intimidade vivenciada em motéis de várias cidades brasileiras. Ao longo das quase duas horas do filme, acompanhamos sete casais, um trisal e um homem convidados a se filmar livremente durante uma noite e compartilhar os seus vídeos para fazer parte do filme. Dezoito pessoas no total, incluindo a própria diretora, que aparece brevemente no início para também se colocar frente à câmera dentro de um quarto de motel em meio a um encontro frustrado. O dispositivo usado na feitura do filme então é bastante simples, mas compreensível pelas contingências do próprio tema. A única diretriz técnica dada pela diretora para os participantes foi a gravação na horizontal. No entanto, a aparente falta de controle sobre o registro do material é suplantada pela variedade de experiências e a força de cada uma delas, ambos elementos sublinhados pela montagem.
Importa dizer, em primeiro lugar, que aqui, por incrível que pareça, o sexo se torna secundário. Poderia ir além e dizer que ele é quase uma desculpa para que o filme aconteça, um MacGuffin, como diria Alfred Hitchcock. Isso porque, embora o filme de fato tenha algumas cenas de sexo explícito, elas dizem pouco ou quase nada sobre os personagens, e vão se tornando cada vez menos frequentes ao longo do documentário. As interações humanas, contudo, são o ápice aqui. Não deixa de ser uma hábil ironia que um filme sobre pessoas em motéis tenha seus melhores momentos em instantes de conversa, reflexão e confidências.
Ellis foge, assim, do óbvio flerte com a pornografia, algo que não seria recriminável a priori, mas que claramente não estava no horizonte da realizadora neste filme. A cineasta, pelo contrário, parece estar muito mais interessada em investigar o que há para além do sexo, além de tensionar e questionar as noções cristalizadas que temos sobre o tema e suas intersecções com outras pautas no país. Quais pessoas frequentam os motéis no Brasil? São realmente, ou somente, aquelas que imaginamos? O que essas pessoas pensam sobre si, o sexo, os motéis, a religião, e outros tópicos tão fundantes da sociedade quanto aleatórios nas conversas? O que discutem quando estão sozinhos no quarto, antes ou depois da transa? Como destacou a própria diretora, em entrevista ao Cinematório, “os momentos antes e depois do sexo são os que nos levam às coisas mais íntimas”.
Nesse sentido, é espantoso como a diretora e sua equipe de pesquisa conseguiram reunir um conjunto representativo do Brasil. Há casais héteros de várias idades, casais LGBTQIA+, adeptos de BDSM e fetiches, casais evangélicos, homens com crise de meia-idade, prostitutas e solitários, todos com histórias tão únicas que são capazes de ultrapassar essas categorias e ganhar concretude à medida que aparecem em frente à câmera. A partir dessa reunião e seleção bem realizadas, o longa-metragem se torna capaz de mostrar, apenas com seu rol de personagens, que o Brasil vai ao motel. Esse Brasil de “Eros”, a propósito, também se distancia da pornografia pela diversidade de corpos. Ao mostrar pessoas de vários tipos e formas corporais tendo experiências de prazer e compartilhando momentos de intimidade e afeto, o filme retira o estigma do sexo idealizado propagandeado por filmes, séries e pela indústria pornográfica.
O documentário é bem-sucedido também ao saber navegar com fluidez entre as diversas histórias, de tons bastante distintos, crédito para o montador Matheus Farias e, novamente, para Ellis. Assim, primeiro somos apresentados a personagens que protagonizam cenas e diálogos mais bem-humorados e descontraídos, que por vezes faziam todo o Cine-Tenda gargalhar, como no segmento do casal gay e suas digressões sobre o cristianismo, ou no insólito fetiche católico mostrado em certo momento, ou ainda no humor visual que vem de algumas interações do primeiro casal; na mesma medida, o filme também abre espaço para instantes e relatos mais sóbrios e reflexivos, caso do forte monólogo de uma personagem transgênero, que fala sobre suas lutas, sonhos e realizações, ou do último personagem, o único a não ter parceiro, e que compartilha com o público sua solidão, desencontros e inseguranças.
Essa intercalação de momentos mais leves e outros mais emocionalmente densos é precisa em função da montagem, que habilmente preenche os intervalos com conversas casuais, cenas de sexo mais diretas ou planos de estabelecimento ou exploração dos ambientes, dando ao espectador os tempos necessários para sentir e assimilar os impactos do contato com cada casal e seu espaço. Certamente a montagem poderia ser ainda mais dinâmica, alternando entre os diversos personagens, ora introduzindo novos, ora retornando aos já conhecidos, o que poderia propiciar melhores e mais significativas costuras de temas e relatos. A proposta da diretora, entretanto, parece ser a de evitar uma fragmentação das experiências, indo em busca do estabelecimento de vínculos mais substanciais entre o público e os personagens, no que é bem-sucedida. Cada nova pessoa ou casal que conhecemos no filme imediatamente desperta a curiosidade sobre qual será a interação, quais serão as discussões e o quê de diferente veremos ali.
Sabemos que aqueles personagens estão performando diante de nós, voyeurs da intimidade alheia, alguns mais do que outros, como o casal evangélico, os praticantes de BDSM e o próprio casal exibicionista/voyeur. Entretanto, à medida que o filme avança, por mais que novas pessoas entrem, o documentário ganha cada vez mais um ar de “realidade”, como se estivéssemos vendo os personagens sendo quem de fato são no quotidiano por uma janela física, e não através da mediação do cinema. Isso certamente tem a ver com a própria forma de enunciação menos performática de alguns casais, mas também decorre da duração dos planos. O último personagem, por exemplo, fica tanto tempo em tela que, por maior que sua persona seja evidentemente construída, a extensão do segmento começa a nos dar pequenas fraturas que, para além da interpretação frente à câmera, permitem que a própria figura revele cansaços, pequenas aberturas menos montadas e incômodas verdades acerca de sua personalidade e história.
“Eros” se mostra então um projeto ousado e exitoso, com uma premissa original, pesquisa bem-sucedida e montagem notável. Rachel Daisy Ellis, em seu primeiro longa-metragem como diretora, consegue criar um projeto que inova pela temática e, mas ainda, por fugir das obviedades. Para além da galeria de personagens singulares, conhecemos também uma variedade de motéis dos mais inusitados tipos, e como esses espaços se moldam para atender a imaginação humana Trata-se então, sem dúvida, de uma cineasta promissora, que demonstra aqui ter uma visão provocativa e curiosa (no melhor dos sentidos) acerca do mundo a seu redor, qualidades indispensáveis para uma documentarista. “Eros” expõe ao público, com humor, sensibilidade e coragem, que o Brasil vai ao motel. Felizmente, desta vez, o cinema entrou no quarto junto. ■
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