"Estranho Caminho" (2023), de Guto Parente - Divulgação/Embaúba Filmes
"Estranho Caminho" (2023), de Guto Parente - Divulgação/Embaúba Filmes

“Estranho Caminho”: Fortaleza, cidade dos sonhos, e suas personas pandêmicas

21 de janeiro, terceiro dia da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, marcou o lançamento de uma série de livros relacionados ao cinema e ao audiovisual brasileiro. Talvez uma das mais interessantes dentre essas publicações seja o livro “Cinema fantástico brasileiro: 100 filmes essenciais”, pelo trabalho de pesquisa, documentação e crítica que promove acerca dos filmes de gênero feitos no Brasil. Porém, como o cinema brasileiro é vivo e pulsante, mal o livro saiu e já há um filme, exibido no dia anterior aqui mesmo na Mostra de Tiradentes, que poderia facilmente ser a 101º obra incluída na seleção.

“Estranho Caminho”, longa-metragem cearense dirigido por Guto Parente, já é um dos melhores filmes a que eu assisti na Mostra ou em outros festivais. A obra passou em 2023 por diversas competições, ganhando prêmios importantes no Tribeca Festival e no Festival do Rio, entre outros, e agora integra a Mostra Autorias do evento em Tiradentes. A história acompanha o jovem cineasta David (Lucas Limeira), que visita a cidade natal, Fortaleza, para exibir seu mais novo filme em um festival, mas é surpreendido pelo rápido avanço da pandemia de COVID-19. Ele então precisa recorrer à ajuda do pai, Geraldo (Carlos Francisco), com quem não fala há muitos anos. A partir daí, enquanto fica hospedado no apartamento do pai, estranhos acontecimentos começam a atravessar o caminho do protagonista, em uma atmosfera digna de David Lynch e com lampejos de Ingmar Bergman.

Com traços declaradamente autobiográficos, o filme lida com a conflituosa relação entre pai e filho, separados pelo tempo e pela distância, mas também pela resistência de cada um em enxergar o afeto no outro. David, o filho, fica sozinho na cidade após o festival em que seu primeiro longa-metragem estrearia ser adiado. Ao tentar tranquilizar a mente indo à praia, seu celular é furtado. Logo depois, a pousada em que estava fecha, e ele fica sem local para passar os dias que ainda lhe restam antes que consiga voltar para Portugal, onde mora. Resta-lhe apenas o abrigo do pai, que resiste em recebê-lo. Este estado de errância e solidão do personagem é explicitado ao longo de todo o filme por alguns elementos da cinematografia. Seja o zoom-out que vai mostrando o protagonista progressivamente menor em meio à rua deserta, o plano que deixa apenas sua cabeça à mostra, rodeada pela água do mar, ou as sombras projetadas em seu rosto pela persiana da janela, que compõem uma face fraturada pelas escassas perspectivas. Já Geraldo, o pai, é inexplicavelmente reativo ao contato com o filho, o que fica claro por meio dos aparecimentos do personagem, quase sempre de costas ou de perfil para a câmera, ou ainda com o rosto envolto em sombras.



"Estranho Caminho" (2023), de Guto Parente - Divulgação/Embaúba Filmes
“Estranho Caminho” (2023), de Guto Parente – Divulgação/Embaúba Filmes

As interpretações dos atores também colaboram para que esta dinâmica difícil entre pai e filho seja tão séria quanto leve. Embora David sofra com o abandono do pai, o roteiro, a direção e principalmente as atuações naturalistas nunca tornam o filme pesado, desconfortável ou demasiadamente denso. Ambos os intérpretes trabalham com uma noção muito precisa de tempo dramático, sempre dando a cada fala, ou a cada silêncio, ou a cada hesitação o espaço necessário para ficar com o espectador e ter o devido impacto. Lucas Limeira segura o protagonismo muito bem, emprestando um ar desafiador, mas vulnerável ao filho rejeitado pelo pai. O destaque aqui, entretanto, fica por conta de Carlos Francisco. O ator consegue, a partir da modulação de voz, ser ríspido mas ao mesmo tempo cômico, construindo um personagem que, de tão inflexível e duro, contém também um ar de exagero e de mistério. Algumas das respostas de Geraldo são tão ferozmente gratuitas, mas entregues com uma convicção tão genuína, que o personagem nunca cai em um lugar de carrasco. Há sempre algo que se esconde por trás daquela figura, mas que será mantido obscuro até o fim do filme.

Aliás, essa aura de mistério é o que há de mais interessante aqui. Guto Parente, à maneira de David Lynch, insere o espectador em uma narrativa linear, que parece convencional, apesar de alguns elementos dissonantes aqui e ali. É a figura do pai carregando o carrinho, ou a porta no meio da rua, ou ainda as janelas que o protagonista insiste em encarar. Mas todas essas pequenas inserções parecem ser apenas fruto da mente de David. Porém, o comportamento de Geraldo, sempre não querendo falar do próprio trabalho ou se incomodando com qualquer ação do filho, começa a tornar o ambiente instável, como se algo estivesse prestes a se revelar. A estranheza só aumenta pelo referências à pandemia, muito bem integradas ao texto e parte central da narrativa. Geraldo está doente? O que ele tanto faz no computador? Qual o motivo de tantas restrições à presença do filho? Há algum componente psicológico de David interferindo na visão que temos de seu pai? Há algo de errado com a casa, com o pai e talvez com o próprio David. No final, quando descobrimos parte do que de fato se passou, o filme consegue trazer uma resolução que é pouco óbvia e satisfatória, mas ao mesmo tempo deixa interessantes pontas soltas, como o fazem as melhores obras abertas.

Esse tom de presságio também é bem construído por alguns recursos cinematográficos pouco óbvios. A elegante direção de fotografia de Linga Acácio, por exemplo, se vale de cores mais frias, porém saturadas e com bastante contraste, o que torna as imagens vivas, tridimensionais, mas também conserva uma certa superfície etérea, quase vaporosa na progressão dos planos. Já a montagem (assinada por Victor Costa Lopes, pelas irmãs Augusto Lima e pelo próprio Guto Parente), sempre que conveniente, também opera em códigos surpreendentes. É o caso, por exemplo, de quando David vai ao apartamento de Geraldo; no momento em que o pai responde, vemos vários planos-detalhes seguidos mostrando a orelha, a boca e o olho do protagonista, como se as diversas partes do corpo de David estivessem reagindo ao inesperado retorno do pai outrora ausente. O uso expressivo do primeiríssimo plano também ocorre em alguns devaneios de David, como quando ele observa as janelas e, em um plano muito próximo, a visão do personagem aparece refletida em seu olho, de modo a acentuar o que está dominando sua mente naquele momento.

"Estranho Caminho" (2023), de Guto Parente - Divulgação/Embaúba Filmes
“Estranho Caminho” (2023), de Guto Parente – Divulgação/Embaúba Filmes

Se a atmosfera constante do filme deve a David Lynch, a do primeiro longa-metragem de David certamente bebe da fonte de Ingmar Bergman, particularmente de “Persona” (1966) e “A Hora do Lobo” (1968). Do primeiro, o filme dentro do filme de Guto Parente toma emprestado aspectos formais, como as imagens granuladas em Super-8 e os efeitos característicos da película, com cortes e rasgos nas imagens. Já do único filme de terror de Bergman, o longa brasileiro traz o clima de absoluto sufocamento e ansiedade, com figuras estranhas ora sem rosto, ora semelhantes a monstros como Nosferatu.

Guto Parente consegue, com este longa do qual só vemos alguns minutos, mudar momentaneamente o tom do filme e tornar a experiência totalmente aterradora, em um movimento que habilmente sublinha o pano de fundo pandêmico e desesperador do protagonista e do próprio longa-metragem, mas apenas por aquele instante, sem que esse breve mergulho no horror mais direto sobrecarregue o restante do filme. O fato de toda a trama girar em torno de um diretor de cinema também permite ao enredo brincar com a metalinguagem, seja com os amigos de David ressaltando as excentricidades experimentais de seus curtas-metragens, ou com a suspeita sempre presente de que Geraldo esteja escrevendo algo que se relaciona com o próprio filme a que estamos assistindo.

“Estranho caminho” termina como uma curiosa fantasia ancorada tanto na pura fabulação digna de um cineasta, quanto no mais concreto do real (a pandemia de COVID-19 e as relações entre pais e filhos). Talvez o mais importante aqui seja o quão bons são o ritmo e a condução de Guto Parente, que tornam o filme envolvente, mas não negam, em momento algum, o experimentalismo, a ousadia e, porque não, a fantasia. Tiradentes, afinal, não se cansa de demonstrar ser esta uma das especialidades do cinema brasileiro. ■

filme estranho caminho

Nota:

filme estranho caminho

ESTRANHO CAMINHO (2023, Brasil). Direção: Guto Parente; Roteiro: Guto Parente; Produção: Ticiana Augusto Lima; Fotografia: Linga Acácio; Montagem: Victor Costa Lopes, Guto Parente, Irmãs Augusto Lima; Com: Lucas Limeira, Carlos Francisco, Tarzia Firmino, Rita Cabaço, Renan Capivara, Ana Marlene; Estúdio: Tardo Filmes; Distribuição: Embaúba Filmes; Duração: 1h 23min.

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