É dever de um filme ser visualmente inventivo? Imageticamente forte? Plasticamente eloquente? Certamente que não. Há obras-primas calcadas na discrição, e filmes muito ruins com diversos artifícios ostensivos de linguagem cinematográfica. Inventividade, força e eloquência são termos tão subjetivos que atribuir-lhes a qualquer obra é, no mínimo, arbitrário. Mas, sem dúvida alguma, é plausível cobrar de uma obra audiovisual o uso coerente e funcional de um certo repertório de recursos expressivos envolvendo a montagem, os enquadramentos, a construção dos planos, entre outros. Um filme pode ser inteiramente construído de planos fixos, mas quais outros elementos visuais ele mobiliza para contar sua história?
“Eu também não gozei”, filme de Ana Carolina Marinho que abriu a seleção da Aurora na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, parece a todo momento brigar consigo mesmo nesse sentido. Há um título curioso, que provoca o espectador a querer entender o porquê da frase. Há uma história ali, por sinal muito interessante. Há também a necessária perspectiva feminina, ávida por nos levar a ter empatia pela protagonista. Existe, sobretudo, um misto de particularidade emocionada, universalidade social e urgência contemporânea nesta história de uma mãe solo, como tantas outras no Brasil. No entanto, o próprio longa-metragem parece nunca ganhar fôlego de fato para além dos acontecimentos e dos relatos de sua protagonista. A condução um tanto quanto repetitiva e as escolhas temáticas e narrativas muito simples tornam este documentário, por mais forte que seja sua premissa e as falas e situações contidas nele, tímido enquanto obra cinematográfica.
Letícia Bassit, atriz, escritora, dramaturga e roteirista, está em busca de descobrir quem é o pai de seu filho. São quatro possibilidades (nunca identificadas pelos nomes no filme), dentre os homens com os quais se relacionou em um determinado período. Ela já entrou em contato com todos os possíveis pais, cada um reagindo à sua maneira, mas todos alegando que o filho não poderia ser deles porque não gozaram durante o ato sexual. Porém, ela também não. Por que, então, deveria assumir toda a responsabilidade de criar e dar nome à criança?
É a partir deste ótimo questionamento que Ana Carolina Marinho estrutura seu filme, nos convidando a acompanhar de perto a gravidez, o parto e os primeiros meses de Pedro, filho de Letícia, à medida que a mãe tenta convencer, sem sucesso, os homens a assumir a criança ou, pelo menos, a reconhecer legalmente a paternidade e inserir o nome no documento de registro, ainda que ela já esteja obstinada a criar o filho por conta própria. Para transmitir ao público uma certa universalidade, tanto a diretora quanto a montadora Cristina Amaral apostam em muitos diálogos em off, cobertos por imagens aparentemente banais, mas que servem ora para despressurizar a difícil jornada de Letícia, ora para reforçar uma atmosfera quotidiana e, justamente por isso, facilmente identificável. É o que ocorre, por exemplo, quando a câmera deriva para uma gato entrando pela janela da casa de Letícia, ou em um plano que mostra as roupas no varal da residência. Talvez também à procura dessa identificação com o público, já começamos o documentário conhecendo Pedro, e logo depois o filme retrocede para os momentos anteriores ao nascimento da criança.
Tudo isso, entretanto, e até mesmo as virtudes do filme, é eclipsado em grande medida pelas oportunidades conceituais desperdiçadas. Letícia já era atriz antes de engravidar de Pedro, e o monólogo teatral construído a partir de suas vivências incorporou diversos elementos ficcionalizados das experiências de outras mulheres, algo que é pouco destacado no filme, sendo a própria peça apenas mostrada meia dúzia de vezes sem muito contexto. A própria Letícia ressaltou, no palco do Cine-Tenda, antes da exibição do filme, a estranheza de ter ela mesma colaborado no roteiro de Ana Carolina Marinho, recontando sua trajetória materna. Nos créditos finais, descobrimos que os possíveis pais de Pedro foram dublados, o que é um elemento interessante, mas tardio, de complexidade narrativa no documentário.
Quais seriam então as fricções entre realidade e ficção, entre a história factualmente vivida por Letícia e suas diversas camadas sobrepostas de recriação, primeiro como peça teatral, depois como livro, e uma vez mais, na forma de filme? O que de memória pode ter se perdido, o que de linguagem se fez imperativo alterar a depender do material, de que forma as possíveis lacunas poderiam ser dramaturgicamente preenchidas? Obviamente, a história de Letícia é real, constituída de fatos. Mas terá ela passado incólume a três adaptações? Quais as consequências de dramatizar a própria história, ou de simplesmente se expor ao registro cinematográfico? Há trauma ou cura na vivência cíclica de acontecimentos tão desgastantes?
Penso como seria, por exemplo, interessante assistir à própria Letícia trabalhando no roteiro do documentário. Ou a riqueza de mais conversas como a que a cineasta tem pontualmente com sua protagonista sobre os rumos do filme. Em suma, a reflexão acerca do próprio fazer cinematográfico, sobre o que significa ser filmado e como a câmera pode alterar nossa percepção sobre a vida e, por que não, amalgamar-se à dinâmica da própria vida? Claro, pode-se argumentar que este não era o filme que a diretora queria fazer. Igualmente, no entanto, é possível também questionar o porquê de certas escolhas de abordagem em detrimento de outras.
“Eu também não gozei” vai, assim, por um caminho narrativo e formal eficiente, mas muito seguro. A cineasta se vale da câmera fixa e dos close-ups em diversos momentos, quando Letícia narra algum acontecimento ou experiência durante a gravidez ou com os possíveis pais da criança. A câmera, a realizadora e sua equipe aparecem algumas vezes, hora ou outra se integrando à vida e à rotina de maternidade da protagonista. Nos instantes mais emocionalmente carregados, como o resultado do DNA do segundo provável pai, a montagem e a decupagem respeitam a personagem principal, ora cortando, ora escondendo seu rosto e enquadrando alguma outra parte do corpo ou do entorno. Após uma conversa decepcionante com o terceiro e o quarto possíveis pais, a tela se torna preta, dando ao espectador o tempo para absorver os absurdos ditos pelos homens ao telefone.
Tudo isso faz do filme uma experiência tematicamente interessante e tecnicamente competente, mas discursiva e plasticamente repetitiva. Não se trata, claro, de um jeito errado de filmar, mas de um modo de representação expositivo, algo datado dentro da tradição do documentário, e que parece não combinar com a intensidade e a contemporaneidade do tema que estamos acompanhando. Ana Carolina Marinho quer nos fazer sentir, empatizar e entender a solidão de mães solo e a misoginia estrutural brasileira, e nisso a presença constante de Letícia é uma decisão bem pensada. O filme, entretanto, ao tentar cumprir este objetivo legítimo de nos colocar no lugar da protagonista, por vezes cai em vícios que prejudicam seu ritmo e não conversam com o restante da narrativa.
São muito distendidas as cenas em que vemos Letícia brincando com o filho, ou os planos-detalhes da criança sozinha, inclusive no final, com imagens reiteradas de Pedro na praia. Mas o quê exatamente essa duração excessiva dos registros busca comunicar? Já sabemos, desde o início, que Pedro é uma criança frágil, encantadora e amada pela mãe, mas que terá sofrimentos (assim como a mãe) causados pela conduta de homens que não cumpriram com suas responsabilidades mínimas. Parece então não haver confiança suficiente nesse vínculo consolidado já nas primeiras cenas, e uma crença na necessidade de sempre convencer novamente o espectador pelo prolongamento de imagens da criança e de sua mãe. Não deixam de ser momentos poéticos, mas o excesso (em quantidade e duração) acaba por torná-los monótonos e cada vez menos impactantes.
Em outro momento, uma reunião de Letícia com advogadas que a orientam juridicamente introduz ao público uma série de didatismos acerca dos direitos femininos no Brasil, preferindo uma abordagem de conferência acadêmica à apresentação das informações mais bem integradas à narrativa, seja na boca da própria diretora, ou em uma conversa informal de Letícia com a equipe de filmagem, ou ainda, na sutileza de silêncios ou não-respostas. A inclusão das advogadas, embora apresente outras mulheres como possibilidade de futura mudança jurídica, soa deslocada e pouco desenvolvida, parecendo ter o único objetivo de agregar algum valor de autoridade ao documentário. É como se o roteiro sentisse a necessidade de fundamentar a temática em evidências extra-fílmicas, a despeito de as advogadas saírem de cena tão rápido quanto entraram.
“Eu também não gozei” termina em aberto, o que é um acerto, já que obriga o espectador a conviver com a irresolução da dura realidade enfrentada pelas mulheres no Brasil. Ao longo da progressão do documentário, a realizadora permite que esta história ganhe mais relevância em si mesma do que a partir do cinema. Talvez por isso, a voz da protagonista seja constante ao longo do filme, suplantando quase sempre a significação de elementos expressivos cinematográficos como movimentos de câmera, cortes e enquadramentos. Salvo as exceções mencionadas, esses e outros recursos são usados quase sempre de forma protocolar, como suporte à fala, e não como cocriadores de sentido. Ficamos ao lado de Letícia e de Pedro, sem dúvida, mas talvez por uma identificação imediata e pela competência do filme enquanto exposição. Apesar da história e da protagonista que ressoam profundamente fora da tela, infelizmente, aqui, a potência cinematográfica em sua plenitude acaba em segundo plano. ■
eu também não gozei
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