"Foram os Sussurros que Me Mataram" (2024), de Arthur Tuoto - Divulgação
"Foram os Sussurros que Me Mataram" (2024), de Arthur Tuoto - Divulgação

“Foram os Sussurros que Me Mataram”: Verborragia suicida

Quase sempre, conversar com realizadores e profissionais envolvidos na feitura de um filme ilumina novas perspectivas e apreensões sobre a obra. As explicações e detalhes de quem está por trás do projeto podem tanto nos fazer querer assistir ao filme quanto nos levar a compreender melhor os objetivos e colocar as falhas da produção dentro de um contexto mais amplo. Entretanto, nada disso é capaz de se sobrepor a questões problemáticas na estrutura do que foi produzido. Afinal, por mais ousada e deliberada que seja a visão de um diretor e de seus atores acerca da obra, não necessariamente o filme realizado obedecerá a essas projeções.

“Foram os Sussurros que Me Mataram”, novo longa do cineasta, crítico e professor Arthur Tuoto, caminha justamente nesse limiar, entre a admiração pelas ideias que nortearam a produção e a decepção com o resultado final. Ainda que a coletiva de imprensa da equipe, realizada no dia seguinte à pré-estreia mundial do filme na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, tenha tornado mais claro o fascinante processo de produção, as ótimas ponderações de elenco e equipe apenas expuseram o quão mais interessante o filme poderia ter sido. O primeiro longa-metragem de ficção do diretor nos apresenta a Ingrid Savoy (Mel Lisboa), atriz, escritora e celebridade prestes a ingressar em um reality show. Ela passa os dias que antecedem sua entrada no programa confinada em um quarto de hotel, entre visões premonitórias que prenunciam a constante iminência de um escândalo, além de ataques de paparazzi e atentados anarquistas que rebentam pela cidade e ameaçam sua segurança.

O filme começa de maneira muito promissora. Somos apresentados a um close-up da personagem principal, recurso expressivo que estará muito presente no decorrer da narrativa. Logo vemos que ela está se maquiando na verdade em frente a um espelho, que mais parece um eclipse, com reflexo preto e contorno iluminado. Tal como este início com o lápis de olho e a metáfora visual do eclipse indicam, a personagem vive das aparências e em um constante jogo de aparecimento e obscuridade No momento seguinte, a vemos na sala de estar do apartamento, cuja parede envidraçada dá a única visão que temos do mundo exterior. Ela conversa com sua assistente/secretária (Carla Rodrigues), e então somos introduzidos a talvez o elemento principal da peculiar construção narrativa de Arthur Tuoto: os diálogos fortemente anti-naturalistas.



A princípio ainda um tanto aborrecidos, logo as falas mecânicas vão assentando e ficando menos estranhas aos ouvidos. Entretanto, e aí começam os problemas, a ousada escrita do texto na verdade se revela uma sequência de frases de efeito soltas e aleatórias, que quando não parecem tolas, soam incompreensíveis ou o completo oposto, óbvias e pedantes. Poucas se salvam, como a que ouvimos no início, “Nunca é apenas um close”, quando o roteiro e a personagem de Mel Lisboa comentam de forma hábil e metalinguística a própria construção rotineira do filme com close-ups frequentes no rosto apático de Ingrid ‒ além de parecer também um ótimo aceno a Norma Desmond, de “Crepúsculo dos Deuses” (1950).

De resto, porém, temos falas como “Os círculos do capital estão intrinsecamente ligados aos círculos de sociabilidade”, ou “Deus agora é muito mais do que uma distinção semântica”, ou ainda, “As pessoas acham conscientemente que a violência é redentora” se amontoando aos borbotões, sem que nenhuma delas tenha tempo ou real substância para ficar com o espectador e fazê-lo refletir, já que cada frase é imediatamente emendada com outra tão ou mais hermética do que a anterior. Embora certamente haja valor na forma automatizada, fria e quase comicamente séria (como destacado pela própria atriz Carla Rodrigues) com a qual os atores entregam os diálogos, há poucos silêncios aqui para que o público pense sobre cada fala, colocando-a dentro da macroestrutura temática do filme. É igualmente louvável que o também roteirista Arthur Tuoto e os intérpretes se lancem no desafio de dar a cada pergunta ou interação uma outra pergunta adversa, gerando poucos diálogos reais entre os personagens; no entanto, se todos falam mas ninguém nunca responde, as perguntas começam a se tornar banais, meramente protocolares. Se o são, por que então estão ali?

No final das contas, o filme parece nutrir um certo prazer em parecer muito deslocado, algo intelectual. Não por acaso, há citações a Oscar Wilde, Georg Friedrich Händel e talvez referências a Kubrick, como o cenário totalmente branco no fim e a trilha constantemente ruidosa. Nada disso é ruim por si mesmo, mas quando colocados dentro deste filme, os elementos soam pretensiosos, como se fossem uma reação da dita “alta cultura” ao tema que o filme está tratando, a cultura de mídia, de realities shows, de massa. Por mais que haja originalidade em comentar acerca desses tópicos a partir de uma linguagem totalmente desconectada deles, falta ao filme a coragem para mergulhar de fato dentro de seu objeto de crítica, se desprendendo, ainda que seja um pouco, da pretensão acadêmica de olhar o fenômeno por fora.

Sim, o filme evidentemente explora um estado de alienação e loucura que é alimentado por uma máquina midiática. Porém, só sabemos disso pelas exposições do texto, já que não há nada de específico na construção dramática que aponte para uma crítica às dinâmicas de comunicação massificada. Em outras palavras, Ingrid poderia estar trancada no apartamento à espera de uma injeção letal, do casamento ou de um parente distante; bastaria alterar minimamente os diálogos e seria outro filme, tal o descolamento da trama ao assunto que ela se propõe a abordar. Arthur Tuoto, ao falar sobre o projeto na coletiva de imprensa, fez um questionamento que, por mais interessante que seja, não encontra eco no próprio filme: “O que eu faço é uma performance ou sou eu mesmo?”, provocou ele ao falar sobre os realities e o filme. Ora, não deixa de ser uma ótima reflexão. Mas, se nunca vemos Ingrid como ela mesma, dada a natureza explicitamente alegórica atribuída à protagonista e a todos os outros personagens, perdemos a base de comparação e o filme perde a chance de debater qualquer tipo de performatividade para além da que o próprio roteiro criou, aparentemente desconectada de qualquer base minimamente empírica.

Apesar desses graves problemas na gênese do projeto, o filme ganha na execução segura e metódica de Arthur Tuoto. É perceptível um rigor nos enquadramentos, sempre muito simétricos e com os atores no centro do quadro, na iluminação, muito bem direcionada para construir uma aura de fantasmagoria nas figuras em cena, e na paleta de cores muito duras, que quase cortam os personagens. Tudo isso é importante e agrega à atmosfera pesada e enervante que a mise en scène e o texto conseguem construir.

As interpretações também salvam o projeto do naufrágio, tanto pela fluidez e por uma certa musicalidade repetitiva das falas, quanto pela inexpressividade, muito bem compartilhada por todos os atores e atrizes, em especial por Mel Lisboa e Carla Rodrigues. A primeira, ao falar na coletiva, comparou a atuação a um jogo de frescobol, no qual cada participante quer manter a bola no ar, atuando em colaboração com os parceiros. Falando sobre a interação com os colegas de cena, Mel Lisboa explicou que, ainda que as falas não tivessem um lógica convencional de ação e reação, era necessário que os atores se ouvissem com absoluta precisão para que o ritmo da cena pudesse prosseguir. Uma questão de timing da atuação conjunta, completou Otávio Linhares, que faz o diretor do programa no qual a protagonista está prestes a entrar.

“Foram os Sussurros que Me Mataram” é uma experiência interessante, diferente e ousada em termos de forma, mas que perde muito ao se distanciar daquilo em que objetiva focar. Arthur Tuoto, Mel Lisboa, Carla Rodrigues e todos os envolvidos na produção demonstram uma paixão contagiante pela arte, pelo cinema e pela interpretação. Infelizmente, no entanto, grande parte dessa paixão pulsante de criatividade se perdeu pelo caminho. Eis aqui um um filme que não morreu pelos sussurros, mas sim por aquilo que não conseguiu dizer. Surpreendentemente, em um longa repleto de falas, restou o vazio. ■

foram os sussurros que me mataram

Nota:

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