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“Priscilla”: Sob a sombra de Elvis

"Priscilla" (2023), de Sofia Coppola - Divulgação

"Priscilla" (2023), de Sofia Coppola - Divulgação

“Priscilla”, novo filme da cineasta estadunidense Sofia Coppola, me deixou com uma impressão no mínimo estranha. Apesar de muito bem dirigido, de conter todas as marcas autorais da diretora, de um elenco competente e de uma premissa interessante ‒ os bastidores da vida de uma mulher cujo companheiro foi um dos maiores astros da história da música ‒, sentia que faltava alguma coisa. Qual não foi minha surpresa ao constatar, no último plano do longa, que o que falta em “Priscilla” é, justamente, Priscilla.

A diretora do ótimo “As Virgens Suicidas” (1999) e do espetacular “Maria Antonieta” (2006), dentre outros filmes aclamados, agora se dedica a tecer uma biografia de Priscilla Ann Wagner, tornada Priscilla Ann Presley aos 22 anos após o casamento com o Rei do Rock. Ocorre que este filme, baseado no livro de memórias “Elvis e Eu”, lançado em 1985, parece estar constantemente confuso sobre quem é seu (ou sua) protagonista. Caso houvesse mantido o título do livro, não haveria dúvidas, e este seria um filme sobre a relação entre Elvis e Priscilla. Porém, ainda que leve o nome dela, o longa caminha como se fosse uma biografia conjunta do casal. Pior: diversas vezes a impressão é de que estamos assistindo a uma cinebiografia de Elvis Presley.

Sabemos qual o filme e ator preferido do astro ‒ “Sindicato de Ladrões” (1954) e Marlon Brando, respectivamente ‒, conhecemos seu sonho de se tornar ator e ascender em Hollywood e presenciamos alguns dos principais momentos de sua vida (o serviço militar na Alemanha, as estrelas com as quais se relacionou, o abuso crescente de drogas, o desencanto com a indústria cinematográfica, o especial de TV de 1968 que revigorou sua carreira musical, entre outros). Por outro lado, pouco ou quase nada sabemos sobre a titular do filme, Priscilla. Neste sentido, é curioso como o longa começa a partir do relacionamento (abusivo) dela com o cantor e termina com o divórcio dos dois. Penso como seria interessante se a decisão tomada fosse a oposta, ou seja, de iniciar o filme a partir do divórcio, mostrando como Priscilla havia saído da agruras da realeza para voltar a viver no mundo real. Este é, todavia, um filme de Sofia Coppola, que não tem a mínima obrigação de cumprir minhas expectativas. Mas a cineasta parece não cumprir as expectativas nem mesmo da própria proposta.

"Priscilla" (2023), de Sofia Coppola - Divulgação
“Priscilla” (2023), de Sofia Coppola – Divulgação

A Priscilla de Sofia Coppola é uma jovem sobre a qual nada descobrimos para além do fato de amar Elvis. Uma esposa que não faz outra coisa que não esperar, pacientemente, pelo retorno de Elvis. Em suma, uma mulher que não vemos em nenhum empreendimento senão o de agradar Elvis. Tal construção até poderia ser usada, e de fato é algo eficiente, para mostrar a compressão à qual Priscilla foi submetida ao longo de sua convivência com o artista (inclusive sendo incentivada a consumir as mesmas substâncias que ele). Porém, a representação da suposta protagonista aqui é em tudo apagada. Ela não tem objetivos, ideias e rompantes que estejam desvinculados de Elvis. A personagem parece existir apenas condicionada à existência e às vontades do Rei do Rock.

Por exemplo, em dado momento o cantor pergunta a opinião da esposa acerca de uma música que lhe foi oferecida para gravar. Priscilla responde de modo indeciso, e Elvis reage jogando uma cadeira na direção dela, apressando-se logo depois em se desculpar. É uma ótima e corajosa cena, se pensarmos na desconstrução do mito erguido em torno da figura de Elvis. O momento adiciona diversas camadas contraditórias e agressivas de personalidade a ele, geralmente representado como alguém vitimado (pela família, pelo empresário, pela mídia, pelas drogas), mas benevolente. Mas e quanto a Priscilla? Ela acaba não respondendo à violência do marido, e permanece em choque ouvindo as desculpas dele. É compreensível que a personagem não reaja concretamente, mas poderíamos ter acesso a algum pensamento, projeção ou devaneio no qual ela se defendesse ou revidasse. Nem isso, contudo, nos é oferecido. Em que pese não ser esta a primeira representação de agressão (verbal ou física) contra ela no filme, é difícil conceber o porquê de tamanha passividade associada à personagem.

Cailee Spaeny, que dá vida à pretensa protagonista, é sem dúvida uma atriz competente. Ela consegue transmitir através do olhar a combinação de desejo, medo, frustração e amor que a personagem vive à medida que sua relação com Elvis progride e posteriormente naufraga. Entretanto, o êxito da atriz acontece apesar do roteiro e da direção de Sofia Coppola, e não por meio deles. A intérprete consegue, com o mínimo que lhe foi entregue, construir uma personagem em tudo (rosto, corpo e voz) retraída, mas que vez ou outra permite à audiência um vislumbre de sua insatisfação com a relação.

Jacob Elordi, por sua vez, faz aqui um personagem muito mais substancial do que aquele entregue em “Saltburn” (2023), por exemplo, e que permite perceber melhor sua habilidade como ator. Tanto em termos de voz como na postura corporal, ele não investe na mimetização histriônica (porém muito bem-sucedida) feita por Austin Butler em “Elvis” (2022), de Baz Luhrmann, mas sim em um retrato mais humano complexificado, dando foco à imaturidade e à instabilidade de alguém que era tão talentoso quanto autocentrado.

"Priscilla" (2023), de Sofia Coppola - Divulgação
“Priscilla” (2023), de Sofia Coppola – Divulgação

Mas a tormenta de Priscilla não reside apenas no próprio Elvis e, neste particular, Sofia Coppola se sai muito bem ao retomar os mesmos dispositivos já utilizados por ela mesma em “Maria Antonieta”. Assim como na biografia da rainha francesa, “Priscilla” segue a cartilha estilística da diretora ao mostrar recorrentemente, por meio de planos longos, a personagem sozinha dentro de casa (ou do castelo), olhando para o horizonte após momentos de forte carga emocional.

O traço da diretora também se faz presente quanto ela acompanha Priscilla enquanto a personagem se perde por corredores com fundo desfocado, evidenciando ora as fantasias, ora a solidão e as incertezas da jovem. Também estão à vista as montagens musicais da personagem no cabeleireiro, os planos da protagonista andando em um carro (ou será carruagem?) cujo vidro reflete o exterior e ainda os cortes elípticos à la Yasujiro Ozu. Aliás, a edição prova a habilidade de Sofia Coppola para representar cinematograficamente e de modo fluido as passagens de tempo (aqui o crédito vai também para a montadora Sarah Flack, colaboradora frequente da diretora).

No entanto, se em “Maria Antonieta” temos uma protagonista que, mesmo com todas as restrições, ainda tem voz ativa (nunca me esqueço da cena em que ela, ainda uma consorte, começa a bater palmas no teatro, impelindo todo o público a segui-la), Priscilla Presley nunca é ouvida e nunca se faz ouvir, exceto no final. Neste ponto, contudo, já é tarde demais.

"Priscilla" (2023), de Sofia Coppola - Divulgação
“Priscilla” (2023), de Sofia Coppola – Divulgação

Se a comparação com outra biografia da mesma diretora é natural, a relação da “Priscilla” de Sofia Coppola com o “Elvis” de Baz Luhrmann é quase inevitável. Enquanto o filme sobre ele abre espaço para um contexto político e cultural muito maior, Coppola prefere se manter no microcosmo doméstico, e nisto particularmente não vejo problema algum. O já mencionado “Maria Antonieta” é igualmente centrado no particular, e ainda assim consegue ser de uma sensibilidade e de uma complexidade ímpares. Porém, o contraste imediato que emerge entre os dois filmes (para além do tom absolutamente diferente) diz respeito à esparsa presença negra no longa recente.

Não é um problema per se no caso deste filme (apesar do longa se passar em uma cidade predominantemente afro-americana como Memphis, e transcorrer na época da luta pelos direitos civis), mas não posso negar o incômodo com uma certa montagem que, em dado momento, mostra sucessivas vezes apenas o tronco e os braços da cozinheira de Graceland deixando diversas refeições ao longo de vários dias para o casal no quarto, sem que nem ao menos sua face apareça ‒ o  que acaba por reforçar, ainda que indiretamente e talvez não intencionalmente, uma histórica representação servil e desumanizada de pessoas negras.

“Priscilla” e “Maria Antonieta” compartilham também planos semelhantes em seus respectivos finais, mostrando ambas as mulheres deixando o local que lhes prometeu sonho, mas entregou violências. O último plano do primeiro filme espelha o penúltimo do segundo. Porém, ao final da biografia da rainha, o público tem a possibilidade de ter uma nova perspectiva acerca dessa personagem histórica, o que não ocorre com o filme recente. Nem mesmo a direção fortemente autoral de Sofia Coppola é capaz de tornar memorável um roteiro que já nasceu gravemente comprometido por uma inconsistência de proposta. Infelizmente, assim como na vida real e no próprio filme, “Priscilla” vive à sombra de Elvis. ■

filme priscilla

Nota:

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PRISCILLA (2023, EUA). Direção: Sofia Coppola; Roteiro: Sofia Coppola (baseado no livro de Priscilla Presley e Sandra Harmon); Produção: Sofia Coppola, Youree Henley, Lorenzo Mieli; Fotografia: Philippe Le Sourd; Montagem: Sarah Flack; Música: Phoenix, Sons of Raphael; Com: Cailee Spaeny, Jacob Elordi, Dagmara Domińczyk; Estúdio: American Zoetrope, The Apartment Pictures; Distribuição: A24, MUBI; Duração: 1h 44min.

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