"Des Teufels Bad" (2024) - © Ulrich Seidl Filmproduktion / Heimatfilm
"Des Teufels Bad" (2024) - © Ulrich Seidl Filmproduktion / Heimatfilm

Berlinale 2024: Bons filmes e a dinâmica convulsiva do Zeitgeist

A edição de 2024 da Berlinale foi uma das melhores do últimos anos e isso é surpreendente, já que é a última performance do atual diretor artístico, Carlo Chatrian, que foi vilipendiado pela ministra da cultura alemã, Claudia Roth, responsável por criar um verdadeiro caos na procura por um sucessor. Mais do que isso: da forma como foi feito. Nunca me posicionei positivamente pela contratação do italiano, mas a forma com que a ministra lidou com ele é reprovável e indigna para dizer o mínimo.

Chatrian fez um trabalho digno e sai como entrou: cinéfilo obcecado e exímio conhecedor do cinema europeu. Nada mais e nada menos do que isso e Berlim precisa de mais, muito mais.

A Mostra Competitiva, que vinha sofrendo de uma crise existencial-programática, deu uma melhorada considerável no estado de saúde e já não respira por aparelhos. O filme “Des Teufels Bad”, uma produção austríaca-alemã escrita e dirigida por Veronika Franz e Severin Fiala, é uma verdadeira obra de arte de roteiro enxuto e uma cinematografia ao mesmo tempo visceral e transcendente. Tudo nesse filme é um ato de amor e de entrega. Não foi à toa que o prêmio de melhor fotografia foi arrematado por Martin Gschlacht e sua câmera que se transforma num olhar panorâmico, livre e curioso por descobertas, obcecado pelos detalhes que ela desvenda pelo caminho.



O ex-diretor da Berlinale, Dieter Kosslick (vulgo “Mr. Berlinale”), afirmou certa vez: “Filmes nos mostram o que acontece no mundo“, de forma mais abrangente e indomável do que os veículos de imprensa. A Berlinale 2024 teve essa essência, com uma seleção oficial que incluiu desde um documentário codirigido por um israelita e um palestino, Yuval Abraham e Basel Adra, até um trabalho cinematográfico como “A Traveler’s Needs”, do sul-coreano Hong Sang-soo, que tem a dama do cinema e teatro europeu, Isabelle Huppert, como protagonista.

Chatrian, que é um cinéfilo com muito conhecimento, introduziu uma avalanche de filmes franceses e italianos na disputa pelos Ursos de Ouro e Prata. Mesmo sendo o DNA da Mostra Competitiva bem outro (o de dar visibilidade a filmes de países e diretores sem tradição cinematográfica), a Berlinale teve bons filmes no programa de 2024. Minhas apostas para a premiação foram: “My Favourite Cake”, “Des Teufels Bad” e “A Different Man”. Acertei em percentual médio.

O filme iraniano “My Favourite Cake”, de um país autocrata que proíbe um número surreal de cineastas de exercerem a profissão (e muitos, também de sair de casa), mostra o retorno ao ambiente intimista, para dentro do lar e escondido do vizinho bisbilhoteiro que trabalha para o governo.

A metáfora contra o regime autoritário que, em pleno século XXI, extermina toda a sua juventude por ser “rebelde”, ajuda na resistência e naquela porção miúda de conformismo, na falta de tudo, na vontade do abraço ou da simples vontade de dançar na sala de estar das quatro paredes, numa cadência entre o espanto e a curiosidade pelo outro — e, da maneira mais sensual possível deixar aflorar saudades armazenadas durante décadas. O ápice da metáfora é o fim trágico, como na vida real.

"My Favourite Cake" (2024) - © Hamid Janipour
“My Favourite Cake” (2024) – © Hamid Janipour

O filme dirigido por Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha teria voltado para o Teerã com as mãos abanando, não fossem prêmios concedidos por júris alternativos, entre eles os de instituições como a Anistia Internacional e da imprensa local de rádio e TV e, no caso, o Prêmio Ecumênico. Na cerimônia dos prêmios alternativos, estava também a equipe de “Betânia”, dirigido por Marcelo Botta, mas a premiação para o filme brasileiro não veio, lamentavelmente. O longa, que foi exibido na Mostra Panorama, é um mosaico de histórias: são vários filmes num só, mas além de ser um filme de mulheres fortes, é uma celebração da cultura brasileira, coroada com uma performance de bumba meu boi depois de todas as sessões do filme (conforme o Cinematório reportou no Instagram).

Política

Depois de vários protestos conta a extrema-direita no tapete vermelho, na abertura do festival, foi a vez da cerimônia de entrega de prêmios ser o palco para manifestações políticas e uma polêmica fora de proporção. A maioria das manifestaçoes era em prol do povo palestino.

Ao receber o prêmio da mostra Encounters pelo filme “Direct Action”, usando um lenço em solidariedade ao povo palestino, afirmando que Israel está cometendo um “genocídio” — ao que foram dados aplausos inclusive da ministra da cultura, Claudia Roth, e do prefeito da cidade de Berlim, Kai Wegener –, a equipe do filme e seu discurso se tornaram o tema mais falado na mídia alemã desde a noite de sábado (25). Muitos políticos e jornalistas querem ver a cabeça da ministra rolar e usam esse momento para fazê-lo.

Muitos atestam a cineastas da Alemanha uma enrustida postura antisemita. “Quanto tempo ela duraria na Palestina, essa mulher aí com o top transparente?”, foi uma das perguntas que foram mais comentadas nas redes. Outras personalidades pleiteiam a “devolução do prêmio” e alguns jornalistas afirmam que a Berlinale enfraqueceu.

Durante mais de 24 horas, a diretoria da Berlinale ficou calada frente às críticas e pedidos de políticos para que cabeças rolem. Somente no início da noite dessa segunda-feira, 26/02, o festival emitiu uma nota de imprensa, afirmando entender a reação das pessoas “num tema tão sensível” e que a Berlinale é uma plataforma de várias perspectivas e que, “mesmo que elas não nos agradem”, é preciso lidar com temas controversos.

Último tango

Logo na quinta e última programação do italiano Carlo Chatrian, atravessando a pandemia, a guerra da Ucrânia e a de Israel e Palestina, a Berlinale terminou como o Zeitgeist, arrebatada por uma salada política, por uma convulsão de ideologias e tendências.

As dissonâncias sobre quem é Israel ou Palestina virou o assunto da hora na Alemanha. Sua classe política se esconde em meias-palavras devido a questões históricas, já que a Alemanha nazista matou 6 milhões de judeus e até hoje não se permite ficar “do outro lado”. Entretanto, cada vez mais no país, a solidariedade com o povo palestino aumenta; o mundo esteve nas telas da Berlinale e, acima de tudo, em seu palco na cerimônia de entrega de prêmios. Os filmes contaram histórias sobre refugiados que se arriscam pelo Mar Mediterrâneo (“The Stranger’s Case”), sobre ditaduras e autocracias (“My Favourite Cake”), sobre obras de arte roubadas pelos colonizadores franceses e sobre o resgate das mesmas (“Dahomey”, vencedor do Urso de Ouro), sobre o ritual de execução de mulheres não “adaptadas” ao patriarcado (“Des Teufels Bad”) e os rituais regentes na Europa de outrora, para lhes dar uma lição.

"Dahomey" (2024) - © Les Films du Bal - Fanta Sy
“Dahomey” (2024) – © Les Films du Bal – Fanta Sy

As várias crises no mundo se espelharam muito durante o festival mais político de todos. Pudemos também constatar que o interior da casa precisa de uma reforma do piso ao teto. Esta tarefa árdua será incumbência da estadunidense Tricia Tuttle, que somou muita experiência no Festival de Londres, também um festival de público como Berlim. Mas antes de Tricia inaugurar sua escrivaninha no próximo mês de abril à frente da Berlinale, a atual diretoria está ocupada em correr atrás do enorme prejuízo frente à comunidade internacional sobre os posicionamentos pró-Palestina. Nem seria preciso tanta celeuma e tanto cancelamento (o diretor israelense de “No Other Land”, Basel Adra, usou sua conta na plataforma X para informar que está sofrendo ameaças de morte) se houvesse mais flexibilidade e diversidade no diálogo de um tema decerto difícil. Mas é muito bizarro que o mais político festival do mundo seja cancelado por não ter feito uso da censura com os premiados.

O comunicado para a imprensa emitido pela Berlinale na noite de 26/02 se mostra plausível, ao ser argumentado que a opinião é uma liberdade de expressão dos cineastas, liberdade esta que nao expressa necessariamente a opinião do festival, delineada abrangentemente pela CEO antes do início da premiação propriamente dita. Então, por que tanta celeuma? Tem até gente querendo ver cortado o subsídio concedido à Berlinale pelo governo federal. O festival afirma que fará um boletim de ocorrência na polícia devido ao hackeamento da conta do Instagram da Mostra Panorama. Esta parte do roteiro não faz muito sentido. Mesmo assim, seria só uma porção do ensopado.

Bons filmes, intensos encontros também com grandes mestres — como Martin Scorsese, homenageado com o Urso de Ouro Honorário, e Edgar Reitz, mestre do cinema alemão — e, no final, o maior evento cultural da Alemanha sofre uma shitstorm e é cancelado exatamente por ter permitido a diversidade política nos discursos da premiação. Que ironia!