A Berlinale tem, em 2024, uma das edições mais conturbadas de sua história septuagenária. É uma mistura de intermezzo, turbulências, crise de identidade.
A ideia da fundação do festival, em 1951, era tirar Berlim do isolamento mundial, depois da imagem resultante dos 12 anos de governo do Nacional-Socialismo. O intuito era que a cidade se transformasse num cartão de visitas de um país com flair de internacionalidade. Na época, o plano deu certo, mas nos anos 20 do século XXI, a Berlinale, entrando na terceira idade, sob influência dos streamings, do monopólio da Netflix & HBO e de atores atuando como produtores, usando sua influência para posicionar seus filmes em sessões de maior visibilidade.
Mais de 70 anos depois, a Berlinale de 2024 está desfigurada e seu sucateamento vai de vento em popa: o diretor do festival foi demitido pela ministra da Cultura, logo depois de ter recebido o convite de continuar no cargo. Seu desgosto foi veiculado na página do festival, mas o texto foi retirado logo depois. Quatrocentos diretores do mundo inteiro fizeram um abaixo-assinado pedindo a permanência do italiano Carlo Chatrian.
O primeiro a assinar foi o diretor Martin Scorsese, fazendo severas críticas sobre a forma da ministra da Cultura lidar com o ex-diretor da Berlinale. E como a vingança é um prato que se come frio, Scorsese recebe em Berlim, este ano, o Urso Honorário pelo conjunto da obra — e vale lembrar o cineasta que tem a música “Gimme Shelter”, dos Rolling Stones, em muitos de seus filmes.
Decisões precipitadas, erro crasso de gestão e a crônica falta de mão de obra especializada que atinge todos os setores da Alemanha são uma face da moeda. A outra, é um outro cenário político, uma temperatura ambiente caracterizada pelo percentual de intenção de votos para o partido de extrema-direita, AfD e o reverberar disso na sociedade.
A falta de verbas para o evento também fica clara em uma triste quebra de uma tradição de décadas: não há bolsa do festival! Sem falar que a água do bebedouro para a imprensa acaba no início da tarde e não é reposta. No lugar que outrora era uma sala de computadores com suporte técnico, hoje há somente tomadas para plugar aparelhos eletrônicos. Sucateamento em alto nível.
Neste cenário, quem ocupa a cadeira de presidente do júri é a atriz/produtora Lupita Nyong’o. Ela chega a Berlim no momento em que, todos os fins de semana, milhares de pessoas estão nas ruas para defender a democracia e expressar o medo da volta do fascimo.
Cinema é política
Entre os três festivais de “classe A”, a Berlinale é o mais popular e mais político. Lupita é a primeira afrodescendente a ocupar esse posto. Precisaram quase 75 anos para que uma pessoa preta assumisse uma cargo de tal prestígio e importância.
O cunho político da Berlinale 2024 é também sentido no número de autoridades do alto escalão, tradicionalmente convidadas para a noite de gala de abertura. Neste ano, apesar de toda a convulsão político-partidária regente na Alemanha, protagonizada pela AfD, a diretoria do festival inseriu, primeiramente, cinco deputados do partido extremista na lista de convidados. Depois de (outra) carta de protesto de cineastas do país, a diretoria desconvidou (!) os cinco parlamentares da legenda.
Na coletiva de apresentação do júri internacional, na manhã do dia 15 de fevereiro, perguntada se estaria presente na Berlinale se os membros do partido de extrema-direita constassem na lista de convidados, visivelmente desconfortável, Lupita respondeu: “Eu fico aliviada de não ter que responder essa pergunta”, causando um movimento afirmativo da cabeça do seu colega de júri, o diretor alemão, Christian Petzold. Aliás, um outro erro crasso da CEO da Berlinale foi inserir no júri um dos mais premiados diretores do festival. É bem provável que essa escolha seja a “garantia” de que algum filme alemão (dos quatro concorrendo na Mostra Competitva) saia com um Urso na mão.
Cinema brasileiro
A política de estrangulamento do governo Bolsonaro está reverberando agora na Berlinale. São poucos filmes brasileiros e nenhum na Mostra Competitiva. Mesmo assim: a presença brasileira fica bem na foto.
Na Mostra Panorama, “Betânia” é o filme do diretor Marcelo Botta. No coquetel da cerimônia de abertura, eu o encontrei animado, ao lado do sócio Gabriel Di Giacomo Rocha, com as vendas do filme que foram parar “até na Coreia do Sul”.
Na Mostra Encounters, criada pelo diretor Chatrian, os destaques são o filme “Dormir de Olhos Abertos”, dirigido por Nele Wohllatz e produzido pelo premiadíssimo casal Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux.
“Cidade; Campo”, da diretora Juliana Rojas, também está na Mostra Encounters. As atrizes Bruna Linzmeyer e Mirella Façanha, protagonistas do filme, já estão em Berlim e o filme terá première nesta segunda-feira, 19 de fevereiro, no cinema da Academia de Artes. Neste domingo, ocorre a exibição para a imprensa no Zoo Palast, um dos cinemas de maior relevância histórica da Alemanha. Foi também nesse cinema que o filme “Central do Brasil” saiu vencedor com o Urso de Ouro e Fernanda Montenegro, com o Urso de Prata de Melhor Atriz, em 1998.
Confraternização
No estande do Cinema do Brasil, no prédio do Mercado de Cinema Europeu (EFM, na sigla), houve uma happy hour com caipirinha. Uma ótima possiblidade de conhecer cineastas e participantes do Brasil no festival, todas e todos muito animados e cheios de expectativa da estadia em Berlim.