Uma mulher cujo principal superpoder é transformar a bunda em um enorme gorila, uma tartaruga com transtorno obsessivo-compulsivo e uma nuvem com incontinência pluviométrica saem em uma insólita busca por uma vaso com um mapa nos confins da Terra e do mar, enfrentando no caminho um grupo de rinocerontes espaciais que também desejam o que está no destino que o mapa oferece. Esta certamente não seria a sinopse de um filme da Disney, por óbvias razões. Dificilmente também caracterizaria o enredo de uma história do Estúdio Ghibli, geralmente mais ousado, mas marcado pela seriedade conceitual. Custo a pensar então em alguma das grandes empresas produtoras que conhecemos investindo em uma animação com esta premissa. Não surpreende, então, que “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” venha do cenário independente da animação brasileira, com o trabalho de poucas, mas dedicadas pessoas e o imprescindível fomento público.
Primeiro longa-metragem de Marcelo Fabri Marão, animador, professor e diretor de curtas-metragens há mais de duas décadas, “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” levou cerca de dez anos para ficar pronto, desde a concepção até a finalização, e demonstra a consciência artística amadurecida de um criador em relação à forma escolhida para narrar sua história. Animador experiente que é, Marão mostra entender por completo as possibilidades ilimitadas da animação, e se aproveita de cada uma delas, tanto na concepção de sua história, quanto nas formas que encontra para narrar os acontecimentos.
Há pouca ou nenhuma pretensão realista aqui, pelo menos não nas formas, cores e representações. A protagonista, então, tem um rosto fino e pequeno quando comparado ao corpo. Já a tartaruga que a acompanha tem olhos enormes. A nuvem, último personagem do trio, tem olhos, boca e nariz antropomorfizados. Também os cenários fogem da representação fidedigna da realidade, ora apresentando ambientes totalmente monocromáticos apenas com os contornos dos objetos, ora prescindindo totalmente dos cenários, ao colocar os personagens apenas em fundos brancos ou coloridos. Os próprios acontecimentos não respeitam as regras do mundo real, já que a protagonista pode, a seu bel-prazer, transformar seus poros em vacas, e o trio várias vezes obtém informações ao se valer literalmente dos olhos de Fernando Miller, um dos animadores, sem que o roteiro sinta a necessidade de explicar nada disso ‒ justamente porque não há necessidade.
Miller, Rosaria e o próprio Marão, surpreendentemente os três únicos animadores do filme, conseguem, entretanto, dar vida e verossimilhança aos personagens com uma fluidez que, na contramão da proposta surrealista e nonsense, mantém o universo do filme e as ações dos personagens sempre críveis. Apesar de ser uma animação bidimensional, visivelmente rudimentar e manufaturada ‒ alguns trechos lembram quase um animatic ‒ e que não se preocupa com detalhes realistas como sombras, é perceptível um cuidado extremo com a integridade dos movimentos, a perspectiva dos espaços e as proporções sempre mutantes das figuras e também com as interações entre os personagens e deles com os ambientes. Em outras palavras, nem os movimentos animados parecem truncados ou incompletos, e nem os diferentes elementos soam irregulares ou dissonantes. É o caso, por exemplo, das cenas de perseguição ou luta, das transformações esdrúxulas da protagonista ou daquelas envolvendo água, que certamente exigiram centenas de desenhos para ganhar a fluidez e a dinamicidade coerente que apresentam no filme.
“Bizarros Peixes das Fossas Abissais” é muito bem-sucedido também em função das vozes que dão vida ao trio principal. Natália Lage empresta um ar grave e estoico à heroína, com um tom de voz sempre comedido, mas firme. Já Rodrigo Santoro também opta pela seriedade, mas na chave do cinismo. Sua tartaruga, um animal com TOC, parece estar sempre estressada e insatisfeita. Guilherme Briggs, por outro lado, é a contraparte mais leve do trio, fugindo aos papeis que habitualmente faz nas animações ao compor um personagem mais frágil, de fala doce e desajeitada. Os contrastes e variações entre as três interpretações fazem com que o trio se complemente muito bem, tornando a jornada multifacetada e instigante.
A trilha sonora original, criada pelo compositor Duda Larson, é outro recurso que potencializa a aventura ao transitar entre o épico e o cartunesco. O compositor assume a inspiração em John Williams e na televisão japonesa, o que é muito perceptível principalmente nos segmentos em que os heróis precisam lutar contra os vilões e entram grandes solos de instrumentos de sopro. Já as excêntricas transformações da protagonista ganham uma trilha mais animada, com bateria e coro, o que realça o caráter inusitado desses momentos.
Mas, por falar em excentricidades, onde entram os “bizarros peixes das fossas abissais” que intitulam o filme? Talvez no segmento menos interessante do longa. Em dado momento, os três personagens principais são levados ao fundo do mar para finalizar sua jornada e encontrar o tão desejado elemento que norteia a busca da protagonista. Lá, encontram as mais estranhas criaturas, escapam de perigos mortais e testemunham a mecânica do ecossistema selvagem que povoa as profundezas do oceano. Embora visualmente criativo, este trecho do filme se torna cansativo pela excessiva duração e pelas repetições, ao colocar cada um dos três personagens descobrindo e fugindo de algum animal ameaçador. O ritmo também sofre em uma sequência anterior, quando há um monólogo da protagonista explicando o motivo de sua busca pelo mapa e o que pode ser encontrado por meio dele. Embora neste momento o filme introduza uma temática mais séria, a forma encontrada para passar ao público essa informação é expositiva e, sobretudo, monótona, soando pouco criativa em um filme tão marcado pela inventividade e originalidade visual e narrativa.
“Bizarros Peixes das Fossas Abissais” supera, entretanto, esses problemas pontuais e termina como uma obra fresca, com premissa e execução de alto nível, atestando a força da animação brasileira contemporânea. Na saída da sessão no Cine-Tenda, me lembro de ouvir alguém comparando este filme a “O Mágico de Oz” (1939), pela jornada do grupo em busca de um item precioso. A animação brasileira me lembrou, contudo, muito mais o encantamento de “Branca de Neve e os Sete Anões” (1937) e “Nausicaä do Vale do Vento” (1984), principalmente pela construção imagética manual que salta aos olhos. É pela qualidade imperfeita do traço que “Bizarros Peixes das Fossas Abissais” se torna algo fascinante e único. Mais ainda, pela corajosa e arrojada bizarrice, que se converte em algo notável. Pelo pulsante coração independente, não poderia deixar de ser, temos aqui uma obra genuinamente brasileira. ■
Bizarros Peixes das Fossas Abissais
Bizarros Peixes das Fossas Abissais
Bizarros Peixes das Fossas Abissais
Bizarros Peixes das Fossas Abissais
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