Após oito anos desde seu filme anterior, Michael Mann volta a trazer uma nova produção às salas de cinema. “Ferrari” é um filme biográfico, adaptação do livro “Enzo Ferrari: The Man, the Cars, the Races, the Machine” (1991, Brock Yates), com as atuações em destaque de Adam Driver e Penélope Cruz. Para além da marca, o filme foca no personagem Enzo Ferrari, que lida com o luto, conflitos afetivos e o peso de seu legado. Ao contrário do que se espera de um filme biográfico, em que acompanhamos desde o início da história de uma figura pública/histórica relevante, até o ápice ou queda de seu feito histórico, em “Ferrari” vemos um recorte temporal específico, que aborda o passado e suas consequências, e nos permite vislumbrar o futuro do personagem e seu nome.
O longa começa com uma excelente sequência de abertura que é muito eficiente em nos colocar dentro da narrativa, já estabelecendo todos os principais pontos da história. Enzo Ferrari (Adam Driver) acorda ao lado de sua amante, Lina Lardi (Shailene Woodley), passa pelo quarto de Piero, seu filho que teve em segredo fora do casamento, sai da casa e retorna para sua enfurecida esposa, Laura (Penélope Cruz), que o confronta. Enquanto isso há uma movimentação sobre a chegada dos novos pilotos para a marca Ferrari, que está passando por uma crise. A sequência se estende até o ponto em que, separadamente, Enzo e Laura visitam o túmulo de seu falecido filho, Dino. É interessante perceber as diferentes reações demonstradas pela atuação de Driver, que conversa com o falecido filho em um desabafo carregado de peso e culpa, e Cruz, que brilhantemente, sem pronunciar nenhuma palavra, expressa toda a emoção com os olhos marejados e o esboço de um sorriso. Nesta cena, Mann prende toda a atenção do espectador em um primeiro plano dos rostos dos personagens, que nos faz sentir e emocionar. Em menos de 20 minutos todos os elementos já estão bem estabelecidos e assim a narrativa segue.
Com um maior interesse no drama, nos conflitos pessoais e no desenvolvimento dos personagens e suas complexas relações, o diretor opta por não focar em cenas de ação. Apesar de ser um dos assuntos abordados e o que se espera de uma obra sobre a marca Ferrari, o momento da corrida fica reservado apenas para o clímax do filme. O protagonista é o centro de tudo, e os elementos narrativos que giram em torno dele o provocam para que se movimente e avance de forma dramática ao longo da história. Aqui, nós temos um homem tentando equilibrar os conflitos da vida privada e uma crise na vida profissional, e acompanhamos o desenvolvimento de como esses dois universos interferem e modificam um ao outro.
Enzo nos desperta sentimentos conflitantes e ambíguos. O filme apresenta o protagonista sem fazer um julgamento moral sobre suas atitudes, permitindo que ele seja vivo, transitando pela narrativa, entre falhas e acertos, dando uma dimensão mais profunda e humana. Mann domina esta forma de aproximar o espectador do personagem, como já vimos em outras de suas obras. Vale citar os personagens de Robert De Niro e Al Pacino em “Fogo Contra Fogo” (1995) e Tom Cruise em “Colateral” (2004), homens rígidos, às vezes filmados através do para-brisa de carros (táxis ou Ferraris), que aparentemente apresentam uma certa frieza, rejeitam a emoção e não se abalam diante de situações extremas, como por exemplo, a morte que acompanha a trajetória de Enzo como uma sombra estranhamente familiar. O contexto pós-guerra e sentimento de perda, dos amigos e do filho, permeia o desenvolvimento deste personagem, sendo afinal um filme também sobre solidão.
Já diferente dos trabalhos do diretor citados acima, em “Ferrari” a violência não está na ação, mas sim num lugar íntimo e interno. Não é necessariamente um filme sobre crime, com perseguições e tiroteios (apesar de haver uma cena envolvendo uma arma, ao início do filme), mas sim sobre personagens que estão lutando para superar uma certa violência internalizada e simbólica que está presente nos conflitos apresentados no longa.
Em várias de suas obras, Mann explora o universo masculino, exatamente pela escolha de protagonistas homens e suas visões de mundo, em situações e contextos de violência em ambientes urbanos. Mas a presença das mulheres, personagens secundárias nos filmes do diretor, acabam guiando o rumo da narrativa e as decisões dos protagonistas. Cruz traz uma grande força dramática ao filme, interpretando Laura Ferrari que, devastada pelo luto, tenta manter seu lugar e se mostrar presente e viva, mesmo que Enzo a veja como uma representação da perda do filho. E, além disso, também há uma relação de sociedade entre eles na empresa Ferrari, o que deixa a dinâmica entre o casal ainda mais complexa, com mais questões em jogo durante o longa.
A sequência do clímax é chocante e extremamente coerente com a construção feita ao longo do filme. Um nome que carrega um legado manchado de sangue, pela fragilidade de um pequeno detalhe que pode se tornar uma catástrofe. Esta coerência narrativa demonstra o controle da história pelo roteiro, além de ser um filme tecnicamente muito bem executado. “Ferrari” é uma ótima experiência cinematográfica, um bom retorno de Michael Mann às salas de cinema, em uma história que, para além do nome da marca, entrega um desenvolvimento de um personagem ambíguo e instigante. ■
ferrari filme
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FERRARI (2023, EUA). Direção: Michael Mann; Roteiro: Troy Kennedy Martin (baseado no livro de Brock Yates); Produção: Michael Mann, P.J. van Sandwijk, Marie Savare, John Lesher, Thomas Hayslip; Fotografia: Erik Messerschmidt; Montagem: Pietro Scalia; Música: Daniel Pemberton; Com: Adam Driver, Penélope Cruz, Shailene Woodley, Sarah Gadon, Gabriel Leone, Jack O’Connell, Patrick Dempsey; Estúdio: Moto Pictures, Forward Pass, Storyteller Productions, STXfilms; Distribuição: Neon, Diamond Films; Duração: 2h 10min.
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Crítico, roteirista e professor. Graduado em cinema e audiovisual pelo Centro Universitário UNA. Desde 2017 atuando de forma independente em: produção e curadoria em projetos de cineclubes; análise/crítica; comentários de filmes em mostras de cinema; roteiro; ensino sobre linguagem cinematográfica, escrita, artes e mídias.