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“O Menino e a Garça”: O novo (e mais complexo) canto do cisne de Miyazaki

"O Menino e a Garça" (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki - © 2023 Studio Ghibli

"O Menino e a Garça" (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki - © 2023 Studio Ghibli

Certamente um dos maiores desafios da crítica de cinema é o encontro com filmes pouco acessíveis. Não me refiro aqui ao sentido material ou concreto da expressão, mas sim aos desafios de ordem conceitual ou narrativa que algumas obras oferecem ao espectador. De que forma então é possível abordar filmes tão canônicos quanto obscuros como “Persona” (1966), “Bom Trabalho” (1999) ou “Cidade dos Sonhos” (2001), ou obras recentes ao estilo de “Tár” (2022) ou “Segredos de um Escândalo” (2023), entre tantos outros que propõem uma experiência difícil ao público? Não são obras feitas para contar uma história linear, ou para transmitir uma mensagem inequívoca. Ao contrário, parecem filmes dispostos a interpelar o espectador, retirando dele qualquer segurança e negando-lhe o acesso pleno a qualquer cognição. Não raro, assistir a estes filmes é se questionar continuamente acerca do que estamos vendo e de quais significados podemos ou não atribuir àquelas imagens e sons.

“O Menino e a Garça” (2023), mais recente filme dirigido e roteirizado por Hayao Miyazaki e produzido pelo Estúdio Ghibli, nomes lendários da animação, segue exatamente por esse caminho. Trata-se de um projeto cuja complexidade se mostra um desafio a qualquer análise. Com título original (“Como vocês vivem?”) baseado em um livro lançado em 1937 e trama declaradamente semi-autobiográfica, o longa de animação 2D tradicional nos apresenta ao jovem Mahito, que se muda para a propriedade de sua família no campo para viver com o pai, Shoichi, a tia e agora madrasta Natsuko e os vários empregados da casa, depois de perder a mãe durante a Segunda Guerra Mundial. Lá, uma série de eventos misteriosos o levam a uma torre antiga e isolada, lar de uma travessa garça cinzenta, onde o garoto entra em um mundo fantástico partilhado pelos vivos e pelos mortos e guardado por seu tio-avô.

Como é possível perceber, há uma história à primeira vista. Existe, inclusive, uma similaridade estrutural entre “O Menino e a Garça” e dois dos filmes mais celebrados de Miyazaki e do Estúdio Ghibli. De “Meu Amigo Totoro” (1988), temos o pano de fundo dos reflexos da Segunda Grande Guerra, a mudança para o interior como pontapé narrativo e a consequente descoberta de um mundo mágico. Já “A Viagem de Chihiro” empresta a este novo filme uma velha construção como ponte entre dois universos, a protagonista obstinada e sua jornada em um mundo fantástico motivada pelo resgate familiar. Porém, em termos de tom e de abordagem, “O Menino e a Garça” talvez ressoe muito mais o caráter épico e filosófico de “Nausicaä do Vale do Vento” (1984) e “A Princesa Mononoke” (1997). Ou seja, o novo e talvez último filme de Miyazaki parece ser um apanhado da carreira do diretor, mas ao mesmo tempo um passo adiante. Amplificando exponencialmente o que havia ensaiado em “Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar” (2008), o cineasta aqui escolhe, a partir de certo momento, desprender-se totalmente de qualquer amarra narrativa ou contenção temática para criar uma obra tão livre quanto difícil.

"O Menino e a Garça" (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki - © 2023 Studio Ghibli
“O Menino e a Garça” (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki – © 2023 Studio Ghibli

Somos então apresentados a uma galeria de personagens peculiares cuja mitologia é muito menos óbvia do que aquela de “A Viagem de Chihiro”, por exemplo. Temos a garça do título, que estranhamente guarda um homem dentro de si, os pelicanos cujo ímpeto devorador de humanos não passa de reflexo da miséria crescente daquele mundo fantástico, as versões mais jovens da tia e de uma das empregadas de Mahito, os periquitos comicamente antropomorfizados, a jovem com poderes de fogo que conhecemos como Lady Himi, para ficar apenas em alguns.

Enquanto o longa-metragem do início do século era um claro filme de amadurecimento povoado por criaturas totalmente fantásticas, como Sem Rosto e o dragão Haku ‒ seres eminentemente irreais, cuja existência respeita apenas a livre criatividade do roteirista e a cumplicidade do público ‒, “O Menino e a Garça” parece não ser sobre Mahito, mas sim sobre a humanidade e sua constante tentativa de viver neste mundo ‒ isto é, trata-se de uma premissa mais ambiciosa. Não por acaso, o novo filme apresenta diversas criaturas fantásticas, mas grande parte delas como versões de animais (mais especificamente, pássaros). Ao se afastar da abstração pura e aproximar sua fantasia da natureza que conhecemos, Miyazaki consegue o feito paradoxal de tornar o enredo mais intrigante e mais complexo, já que passamos a procurar uma lógica por trás da escolha de garças, pelicanos e periquitos e de como esses animais aparecem na trama.

Claro, os periquitos podem apontar para uma crítica ao militarismo nipônico de então, a garça para o folclore japonês e os pelicanos para uma metáfora da inevitabilidade de certas mazelas, mas é sintomático que, pela primeira vez, um filme de Hayao Miyazaki tenha me levado a tentar elaborar sobre tantos pormenores assim. Quando assistimos a “Nausicaä do Vale do Vento” e “A Princesa Mononoke”, entendemos de imediato serem filmes anti-belicistas e fundamentados primordialmente na tradição cultural nipônica. “O Menino e a Garça”, por outro lado, escapa de qualquer caracterização direta, mostrando-se uma obra mais rica e mais livre, mas nem por isso menos rigorosa em sua execução. Mahito, sua tia, a garça e os outros animais nunca são exatamente o que parecem à primeira vista, e o filme nos leva a caminhos tão inesperados através das ações surpreendentes desse personagens que cheguei a pensar que tudo não passava de uma sucessão algo aleatória de acontecimentos. No entanto, a reflexão sobre o filme me diz que aqui o diretor parece estar muito mais preocupado em falar sobre mundos em transição, dado o pano de fundo do longa. Ora, nada melhor então do que efetivamente mostrar diversas facetas e possibilidades de mundos e relacionamentos, encadeados quase por uma lógica onírica.

"O Menino e a Garça" (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki - © 2023 Studio Ghibli
“O Menino e a Garça” (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki – © 2023 Studio Ghibli

A animação do longa segue essa diretriz, introduzindo um universo visualmente exuberante e detalhadamente desenhado. Somos aqui apresentados ao que o Estúdio Ghibli e Hayao Miyazaki sabem fazer de melhor, com espaços naturalistas servindo de cenário para personagens deliberadamente artificiais. Mesmo as figuras humanas transitam entre a aparência características dos animes (olhos exageradamente grandes, nariz e boca marcados apenas por linhas) e feições mais exageradas (caso das empregadas da casa de Mahito, cujos rostos diferem dos demais personagens por serem muito grandes, alongados e preenchidos por marcas de expressão).

Porém, o destaque aqui fica por conta da garça,  dos periquitos e dos Warawara, seres que lembram os Kodama de “A Princesa Mononoke” e em “O Menino e a Garça” representam as almas que estão prestes a nascer. O animal do título chama a atenção pelo design elegante que dá lugar à insólita figura humana interior de rosto protuberante. Já os periquitos são notáveis por sua variedade colorida e formas arredondadas que contrastam com a ameaça representada por sua sociedade tanto para Mahito e seus companheiros quanto para o próprio universo mágico em que vivem. Os Warawara, por sua vez, impressionam pela capacidade do diretor de criar figuras muito simples e semelhantes entre si, mas com detalhes que as distinguem tanto na forma quanto no propósito. Se os Kodama de “A Princesa Mononoke”, com seus olhos e bocas pretos e contornos mais fechados,  lembram espectros corporificados e têm a séria função de indicar o bem-estar da natureza, os Warawara de “O Menino e a Garça” apresentam um aspecto mais gracioso e arredondado, com braços, pernas e olhos pequenos e bocas preenchidas de rosa, uma visualidade lúdica semelhante à de balões, e que combina totalmente com o estágio pré-vida das criaturas.

Para além da concepção imagética dos personagens, o novo filme de Miyazaki mantém a qualidade da animação dos outros filmes feitos pelo diretor. Seja pelos cenários e objetos repletos de detalhes em harmonia com o traço, as formas e cores realistas dados aos espaços, ou pelos efeitos de luz, vento e sombra que dão concretude aos ambientes, ou ainda, pelas composições que prezam pela perspectiva e proporção naturalistas. Mas talvez o que o filme faça de melhor, a exemplo de outros trabalhos do cineasta, seja a fluidez de movimento dos objetos e personagens, principalmente quando nos atentamos para a garça do título. Há um plano em especial, que mostra a ave voando de um ponto até a torre da propriedade de Mahito, no qual a desenvoltura da animação e a impressão de profundidade necessária para mimetizar um sobrevoo são atingidas em nível de tamanha excelência que momentaneamente seria possível esquecer que cada um dos diversos quadros foi desenhado individualmente. Dignas de nota também são as cenas que mostram, em primeira pessoa, a intrincada dinâmica de movimento da flecha do arco de Mahito, que ganha vontade própria após ser reforçada com uma pena da garça.

"O Menino e a Garça" (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki - © 2023 Studio Ghibli
“O Menino e a Garça” (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki – © 2023 Studio Ghibli

Aliás, o que não falta a “O Menino e a Garça” são imagens memoráveis. Vemos Mahito quase ser teletransportado por uma multidão de sapos que cobrem seu corpo, a ilusão de sua mãe se desfazer como água em frente a seus olhos, um pelicano ferido expelir sangue e logo depois morrer na presença do garoto, as rememorações da morte violenta de sua mãe em meio ao bombardeio, sua travessia para o encontro com o guardião daquele mundo e sua rocha mística, os pequenos blocos de pedra regendo o equilíbrio do universo fantástico, dentre tantas outras construções visuais que vão do bizarro ao misterioso, sem nunca perder a sensibilidade própria das animações do Estúdio Ghibli. Mas sem dúvida uma das imagens mais fortes do longa acontece ainda no início, quando Mahito se fere com uma pedra após uma briga na escola. O mal que podemos fazer a nós mesmos paira ao longo de todo o filme, se pensarmos que a trama se passa ao longo do conflito mais mortal da história. E é justamente esta atitude de Mahito que o impede de no final assumir a responsabilidade da construção de um novo mundo. Enquanto nossas mãos se levantarem para machucarem a nós mesmos, uma outra realidade não existirá, parece ser o discurso de Miyazaki.

Todas essas imagens de densidade emocional singular são acompanhadas por uma trilha sonora não menos inspirada. Joe Hisaishi, em sua décima primeira colaboração com Miyazaki, entrega aqui uma música doce e minimalista, mas capaz de tocar profundamente o espectador justamente por sua discrição. Ao invés de chamar a atenção para si, a trilha musical é habilmente composta de forma a pontuar brevemente os momentos-chave do filme. São especialmente bem-sucedidas as três notas ao piano (das quais uma é repetida quatros vezes, seguida das duas seguintes) que entram toda vez que Mahito se conecta de algum modo com a mãe falecida. Tal qual os súbitos golpes de saudade, a economia das notas repentinas ajuda a transmitir ao público a aspereza do sentimento que toma o garoto nesses instantes.

Hayao Miyazaki diz que “O Menino e a Garça” é seu último filme. Assim o foi com “Princesa Mononoke”, em 1997, e com “Vidas ao Vento” (2013). Ainda é possível, então, ter esperanças de que mais obras-primas sairão da mente do cineasta. Entretanto, “O Menino e a Garça” parece ser o filme ideal para nos lembrarmos de Miyazaki. Aqui ele reúne toda sua expertise na arte da animação a serviço das tramas fantásticas, instigantes e reflexivas que sempre foram sua marca, conseguindo o feito de ir ainda mais além. Este é um filme do qual se pode muito falar, mas que sempre, como as grandes obras do cinema, permanecerá misterioso, grandioso e inacessível, no melhor dos sentidos. Mahito, a garça, Natsuko, Himi, o tio-avô de Mahito e suas relações entre si e com os universos (o nosso, real, e o fantástico que conhecemos no filme) seguem tendo algo de imperscrutável. Miyazaki, no alto de seus mais de 80 anos de vida e 40 de carreira, também. Suas ideias, mundos e genialidade serão sempre um fascinante mistério. Este seu novo (e mais complexo) canto do cisne não poderia ser melhor prova disso. ■

o menino e a garça

Nota:
"O Menino e a Garça" (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki - © 2023 Studio Ghibli
“O Menino e a Garça” (The Boy and the Heron, 2023), de Hayao Miyazaki – © 2023 Studio Ghibli

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O MENINO E A GARÇA (Kimitachi wa Dō Ikiru ka/The Boy and the Heron, 2023, Japão). Direção: Hayao Miyazaki; Roteiro: Hayao Miyazaki (baseado no livro de Genzaburō Yoshino); Produção: Toshio Suzuki; Fotografia: Atsushi Okui; Montagem: Takeshi Seyama; Música: Joe Hisaishi; Com: Soma Santoki, Masaki Suda Aimyon, Yoshino Kimura, Shōhei Hino, Ko Shibasaki, Takuya Kimura; Estúdio: Studio Ghibli; Distribuição: Toho, SATO Company; Duração: 2h 4min.

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