Entrada do Berlinale Palast durante a Berlinale 2024 - Divulgação/Berlinale
Entrada do Berlinale Palast durante a Berlinale 2024 - Divulgação/Berlinale

Berlinale 2024: De volta para o futuro

Contrariando todas as possibilidades e prognósticos, a Berlinale 2024 entregou todos os quesitos que um festival de cinema de alto cunho político poderia fazer, ajudada claro pela complexidade no formato mil-folhas regente no cenário geopolítico. E teve mais: encontros memoráveis com o mais importante diretor da atualidade, Martin Scorsese, e com o mestre da cinematografia alemã, Edgar Reitz. O que esses dois já nos possibilitaram de momentos mágicos no cinema não está escrito, mas está na imagem: é igualmente sagrado e inesquecível.

Eu me considero sortuda: leio Goethe e Gilberto Gil sem necessidade de tradução, sou amiga da Dona Fernanda (Montenegro) desde que ela aqui esteve com “Central do Brasil” (na época, eu era “só” cinéfila) e tive a chance de falar in loco duas vezes com Scorsese sobre a melhor banda do mundo: em 2008, quando ele trouxe os Rolling Stones para apresentar “Shine a Light” e quando veio em 2024 para receber o Urso de Ouro pelo conjunto da obra e ainda fazer uma Master Class, nos possibilitando adentrar seu universo de percepção da arte de dirigir. Aprendemos com ele que é necessário se “reclusar” 15 dias antes do início das filmagens para estudar, de forma prussiana, o storyboard.

Claro que os Stones tinham que ser um assunto. Na coletiva em 2024, indaguei se o veterano na Sétima Arte pensa em realizar um novo filme com os músicos, eles que gravaram um disco depois de um hiato de 18 longos anos. “Por que não?”, respondeu ele. A minha pergunta fez o mestre lembrar de um dito do frontman, Mick Jagger. Com matemática clareza e precisão, ele pareceu se lembrar, exatamente naquele momento, de uma frase que o cutuca até hoje. Ao replicá-la, levantava os ombros e a sombrancelhas gigantes, como se usasse o vocabulário de Tim Maia: “Pode isso, Produção?” Segundo Scorsese, “Mick Jagger falou que ‘Shine a Light’ é o único filme meu que não tem ‘Gimme Shelter’ na trilha sonora”.



Martin Scorsese recebe o Urso de Ouro Honorário na Berlinale 2024 - Divulgação/Berlinale
Martin Scorsese recebe o Urso de Ouro Honorário na Berlinale 2024 – Divulgação/Berlinale

A presença da falta 

A gente estava com muitas saudades de festivais que entregam tudo, que matam a nossa sede e a nossa fome; eu não falo de necessidades físicas, mas sim das intrinsecamente existenciais para todo cinéfilo que se preza. Porém, a Berlinale está capenga em seu alicerce e precisa de uma recauchutagem para se manter na linha dos três principais festivais da chamada “categoria A” e não despencar no medíocre.

Se você acha isso improvável, engana-se. Conversei sobre isso com Fred Burle, brasileiro atuante como produtor de cinema na Alemanha. Ele delineou os itens de mercado entre os motivos que fizeram a Berlinale cair para terceiro lugar (depois de Veneza), dos festivais de “categoria A”. Uma das vertentes é a época de lançamento dos filmes, afirmou Fred. Títulos com première mundial em Veneza pegam carona na temporada de final de ano e no período natalino. Ao indagá-lo se a produtora na qual atua, a One Two Films, estava com algum filme na Berlinale, ele respondeu: “O nosso último filme ainda não ficou pronto”, ou seja, a próxima estação será na Cote D’Azur, em solos franceses.

Renascer das cinzas 

Os anos da pandemia colocaram a Berlinale frente ao seu maior desafio em sua longa história de 74 anos. Pelo próprio motivo de seu nascimento (na época, no setor militar ocupado pelos ingleses), houveram muitos percalços e atropelos (também de caráter histórico), mas as crises múltiplas e paralelas trazem ainda um desafio maior.

Tem muita gente dando pitaco, muito “engenheiro” e “arquiteto” envolvido na construção da Berlinale do futuro. A Era Chatrian (2020-2024) foi curta, mas o suficiente para exibir os defeitos e a estrutura enferrujada daquele que é o maior evento cultural da Alemanha. A Berlinale precisa de uma renovação completa, uma nova roupagem, em todos os setores. Sem exceção.

A mais urgente das necessidades é mudar todos os antigos curadores das mostras e seus conselheiros também. A ministra da cultura, Claudia Roth (Verdes), deixou muita terra queimada pelo caminho durante um alinhavar que (para dizer ao mínimo) foi caótico no processo de sucessão do italiano Chatrian — ele que, aqui entre nós, nunca foi um berlinense da vero. A princípio, foi oferecido a ele a possiblidade continuar como único diretor (sem a dobradinha com uma CEO), mas depois o cargo lhe foi tomado, de supetão.

Assistir aos filmes inscritos e avaliá-los de sua residência no tirol do sul na Áustria não é proibido, entretanto, a presença física na cidade de Berlim durante todo o ano, em eventos de cinema com glamour & eventos no setor off, é imprescindível. Ser o “Mr. Berlinale” é uma tarefa para todo o período do extenso calendário cultural da cidade que é a capital da Europa. É preciso interagir com o setor, fazer bonito nas festas e manter um diálogo contínuo. Com Chatrian isso não foi possível tanto por motivos geográficos, mas também linguísticos e pela sua personalidade avessa aos holofotes.

No fim da edição 2024, ele já lia textos na língua de Schiller & Goethe de forma convincente, mas o “Mr. Berlinale” precisa de muito mais. É preciso mais do que ser “somente” um exímio conhecedor e crítico de cinema, um cinéfilo de carteirinha. É preciso se sentir bem ao redor de holofotes, ter credibilidade para ser despojado com as estrelas de Hollywood, do cinema internacional, e ter coragem em trazer para Berlim filmes ousados, que quebram parâmetros. Essas características fazem parte principal do DNA da Berlinale e elas foram se perdendo no tempo.

Carlo Chatrian - Divulgação/Berlinale
Carlo Chatrian – Divulgação/Berlinale

Mr. Berlinale par excellence 

Quando a deusa Claudia Cardinale recebeu o Urso de Ouro pelo conjunto da obra em 2004, a cerimônia de entrega foi no cinema Internacional, o mais prestigioso da antiga Alemanha comunista e que, por nenhum acaso, fica em frente ao Café Moskau. O templo do cinema existe até hoje e, apesar das avassaladoras mudanças na cidade de Berlim, ele mantém seu propósito original: exibir filmes. Já o Café Moskau se tornou um lugar de eventos e congressos para gente graúda. A arquitetura desse cinema foi concebida como uma rampa. O palco é o fim dela.

Na época da Cortina de Ferro, esses dois lugares eram um must para ver e serem vistos. Um era um regozijo para a retina; o outro, para a volúpia dos paladares. Posicionado lá em cima, na entrada do palco, o ex-diretor Dieter Kosslick soltou no ar: “Claudia, se você quiser o Urso, vai ter que vir aqui buscar”.

Em 2008, o ano mais musical do festival, Kosslick chegou atrasado para o bate-papo na antiga mostra do “Cinema Culinário”. A resposta dele foi: “Eu estava jantando com a Madonna em Kreuzberg” — este, um bairro ex-underground e de grande importância na época em que Berlim tinha o status de uma ilha. São momentos como esses que ficam cravados na memória de todo obcecado por cinema e pelo alvoroço dos festivais. Desse Joi de Vivre Berlinoise, os amantes de cinema sentem muita falta. Chatrian não foi capaz e talvez nem mesmo quis suprir essa lacuna.

Kosslick, o “Mr. Berlinale”, foi o mais influente e mais carismático que o festival teve depois da queda do Muro de Berlim. Chegar perto do que ele tornou o festival é missão ingrata, mas irremediável.

Here we go! 

O futuro a Deus pertence, diz a sabedoria popular. Mesmo antes da gestão da estadunidense Tricia Tuttle começar em abril, uma coisa já é certa: a Berlinale ficará mais feminina. O foco LGBTQIAPN+ será mantido. Para além disso, não sabemos nada.

Podemos especular que a Berlinale se dobrará a Hollywood e irá se submeter ainda mais a fatores econômicos, algo que já transpareceu depois da pandemia, na edição 2022.

O tabu de ter uma bolsa do festival para a imprensa foi quebrado este ano. Um disparate! Tomara que o trauma que dá fim a uma era e se faz sentir como um soco no estômago dos colecionadores de bolsas como parte de sua very personal Berlinale seja o único choque que teremos nos próximos anos.

Antes de terminar a resenha com olhar para o futuro, deixo aqui o meu desejo que a mostra Panorama, tradicionalmente casa do Art Haus Cinema e anfitriã-mor do cinema brasileiro, ganhe um novo time de curadores e consultores. Ao meu ver, não há alternativa para um sistema de rotação. É preciso uma equipe sensível e capaz de ver “além da beira do prato” quando o olhar é para filmes brasileiros que, decerto, estarão mais presentes do que neste ano, quando a política de fomento do governo Lula apresentar seus desdobramentos e frutos.

A brasileira Juliana Rojas venceu o prêmio de melhor direção na mostra Encounters, com "Cidade; Campo" - Divulgação/Berlinale
A brasileira Juliana Rojas venceu o prêmio de melhor direção na mostra Encounters, com “Cidade; Campo” – Divulgação/Berlinale

Encounters? Yes!

O que Carlo Chatrian deixa de legado e herança é a mostra Encounters, criada por ele como um intermezzo de narrativa juvenil e ousada. Que a nova diretora tenha sabedoria e olhar técnico para manter esta mostra que, em 2024, trouxe belas surpresas e obras grandiosas, deixando o nosso coração cheio de esperança. Paradoxos nesses tempos, você decerto há de achar. Mas lembremos o que filosofava outro mestre do cinema alemão, Rainer W. Fassbinder: “O Cinema liberta a mente” (Kino macht den Kopf frei).

a Berlinale 2024

a Berlinale 2024

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