Uma das imagens-síntese do melodrama é a protagonista diante de sua janela fechada, o olhar perdido e melancólico mirando o nada, presa numa gaiola de belos figurinos e móveis impecáveis que deveriam conferir sentido à sua existência, mas não o fazem. Um detalhe importante nessa descrição é que, via de regra, essa protagonista é uma mulher. O melodrama é, historicamente, o gênero do sofrimento feminino.
O que vem a ser, curiosamente, um dos motivos por trás da fascinação de homens gays pelo gênero. Por meio das performances arrebatadoras, extremas e, por vezes, exageradas, da tortura e do martírio de divas como Bette Davis, Joan Crawford, Joan Fontaine, Julianne Moore e tantas outras, gays puderam sentir e extravasar uma série de emoções – melancolia, angústia, suplício, resignação, solidão – que, culturalmente, não cabem aos homens. Meninos não choram. No entanto, o melodrama e suas divas historicamente forneceram uma máscara por trás da qual homens gays podiam sentir, e esconder, tais emoções.
O que nos traz a “Todos Nós Desconhecidos”. O primeiro plano do filme do cineasta Andrew Haigh (“Weekend”, “45 Anos”) mostra seu protagonista exatamente diante de sua janela fechada, o olhar perdido e melancólico mirando o nada, preso numa gaiola de belos figurinos e móveis impecáveis que deveriam conferir sentido à sua existência, mas não o fazem. No reflexo da janela, Londres, a megalópole multicultural, efervescente e populosa que, na sobreposição do enquadramento, está a um olhar de distância e ao mesmo tempo impossivelmente inalcançável.
Logo nessa primeira imagem, o longa estabelece a profunda solidão de seu personagem central: um homem vivendo em uma das maiores cidades do mundo, mas incapaz de conectar-se com, e completamente isolado, dela. Sim: um homem – e um homem gay. O que vem a ser provavelmente a maior subversão do filme de Haigh que é, em todos os seus aspectos, um melodrama.
O longa é cheio de cenas carregadas de lágrimas, confrontos emocionais em ambientes domésticos perfeitamente decorados e iluminados, um protagonista melancólico, assim como uma premissa alicerçada em um artifício narrativo, coroada com uma reviravolta devastadora no final. E, claro, o uso onipresente da música, o melo que acentua o drama: desde a balada oitentista “The Power of Love”, da banda inglesa Frankie goes to Hollywood, citada no início e no fim para marcar o romance central da história, passando por “Death of a Party”, do Blur, numa balada queer para comentar o tom fúnebre do longa, até a versão do Pet Shop Boys para “Always on my Mind” que serve como um pedido (nada sutil) de perdão em determinada altura da história.
Porém, em “Todos Nós Desconhecidos”, não há máscaras para os gays se esconderem. No centro de sua trama sofrida e emocional, está um homem gay – interpretado por um ator gay, Andrew Scott, que entrega uma performance de alto calibre digna de Davis, Crawford & cia. – lidando com questões emocionais estritamente queer, que o fazem chorar. Adaptada do romance escrito pelo japonês Taichi Yamada em 1987 – ou melhor, queerizada, já que o protagonista original é heterossexual –, a história segue Adam (Scott), um roteirista de meia-idade vivendo sozinho em um arranha-céus londrino. Ao tentar escrever um roteiro sobre seus pais, que morreram num acidente de carro quando ele tinha 12 anos, o protagonista acaba “invocando” os dois de volta à vida numa visita à casa onde eles viviam durante sua infância nos anos 1980. E enquanto passa a encontrar e ter conversas profundas com sua Mãe (Claire Foy) e Pai (Jamie Bell) sobre a criação traumática e sobre quem ele é agora, Adam também se apaixona por Harry (Paul Mescal), um charmoso jovem queer que parece ser o único outro morador de seu prédio.
Essa premissa fantástica de reconectar-se e conversar com os pais mortos quando eles tinham a mesma idade que o protagonista tem agora é executada por Haigh sem firulas ou efeitos visuais. Não há fantasmas, corpos etéreos semitransparentes ou nada do gênero. Com a ajuda da belíssima fotografia de Jamie Ramsay, o cineasta usa a justaposição do azul e do laranja da paleta de cores para distinguir a frieza dos traumas emocionais do passado do calor do romance no presente, até que as duas cores – e as duas épocas – se chocam numa noite de música e drogas numa balada queer.
Porque o que interessa ao diretor, e ao seu filme, é a jornada emocional por trás desse artifício. Se a poeta norte-americana Louise Glück afirma que “só se vê o mundo uma vez, na infância. O resto é memória”, Adam decide retornar a esse trauma original para entender – e curar – a profunda solidão que o acomete e sua incapacidade de abrir-se emocionalmente para outras pessoas. Na impossibilidade de confrontar essa dor, visto que os pais estão mortos, ele – um roteirista – fabula essas conversas, esses encontros, para discutir as micro (e macro) violências, o abandono, a incompreensão e o profundo senso de isolamento vividos por quase todas as crianças queer crescidas nos anos 1980 e 1990 em meio à crise da Aids, em que não ser heterossexual significava pecado, doença e morte.
Esses confrontos são o centro e o grande trunfo de “Todos Nós Desconhecidos”, carregados pelas atuações impecáveis de Scott, Foy e Bell. São as performances dos três, tão naturais quanto devastadoras, e a direção precisa de Haigh que fazem o espectador esquecer qualquer questionamento lógico e se deixar inundar pela profunda verdade emocional das cenas do protagonista discutindo sua sexualidade e sua infância com os pais. É feito sob medida para fazer você chorar – e chorar copiosamente, aos soluços. E é isso que um bom melodrama faz – desta vez, sem máscaras. ■
todos nós desconhecidos
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TODOS NÓS DESCONHECIDOS (All of Us Strangers, 2023, Reino Unido). Direção: Andrew Haigh; Roteiro: Andrew Haigh (baseado no livro de Taichi Yamada); Produção: Graham Broadbent, Peter Czernin, Sarah Harvey; Fotografia: Jamie D. Ramsay; Montagem: Jonathan Alberts; Música: Emilie Levienaise-Farrouch; Com: Andrew Scott, Paul Mescal, Jamie Bell, Claire Foy; Estúdio: Film4, TSG Entertainment, Blueprint Pictures; Distribuição: Searchlight Pictures; Duração: 1 h 46 min.
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