"Guerra Civil" (Civil War, 2024), de Alex Garland - © Ascot Elite Entertainment Group.
"Guerra Civil" (Civil War, 2024), de Alex Garland - © Ascot Elite Entertainment Group.

“Guerra Civil”: Carnificina através das lentes

Muitas vezes, o sentido principal de um filme está em elementos externos a ele, mas que são tão bem aproveitados pelo cineasta a ponto de parecerem ter sido idealizados justamente para caber ali, naquela obra. É precisamente isto que ocorre em “Guerra Civil” (2024), mais recente filme dirigido pelo britânico Alex Garland. Em inglês, shot pode significar tanto tiro de um armamento de fogo quanto uma fotografia tirada por uma câmera, ou ainda, um plano cinematográfico. A língua portuguesa preserva parcialmente essa correspondência: no nosso idioma, um disparo pode ser feito tanto através de uma arma quanto por meio de um dispositivo fotográfico. Se pensarmos bem, são termos iguais para movimentos opostos. Enquanto uma fotografia preserva a vida, imortalizando aquele momento, os projéteis cumprem o claro objetivo de exterminar. Não por acaso, a fotografia é passiva, dependendo da luz que chega aos sensores da câmera, enquanto as armas são ativas, indo ao encontro de quem é alvo do desejo assassino.

Como então ações tão díspares podem se encontrar? Talvez de forma mais evidente do que se poderia pensar. Fotografar, assim como atirar, é um demarcador de poder. Quem fotografa pode destruir, reconstruir, alterar, minimizar ou engrandecer. E pode também não fazer nada. Qual então seria o ato mais assassino? O de quem atira, ou o de quem fotografa a morte, sem nada fazer para impedir o que se passa à sua frente? Mais do que então preservar a vida moral, abstrata e simbólica de um indivíduo ou acontecimento, a fotografia é capaz de deixar morrer a vida concreta. São estas contradições que estão no centro e na tangente de “Guerra Civil”, movendo a trama e propondo questionamentos desconfortáveis, mas nem por isso menos necessários.

O filme acompanha a fotojornalista Lee Smith (Kirsten Dunst) em sua cobertura da guerra civil que tomou os Estados Unidos em meio a um governo autoritário. Ao lado dela, os também jornalistas Joel (Wagner Moura), Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a inexperiente fotógrafa Jessie (Cailee Spaeny) completam o grupo de profissionais da imprensa que se dirigem à Casa Branca para tentar uma entrevista com o ditador cobiçado pela resistência. Diferentemente da Guerra Civil real na qual os Estados Unidos mergulharam na segunda metade do século XIX, aqui, os rebeldes não são os vilões, mas sim aqueles que procuram tirar do poder um líder extremista. Ou seja, o obstáculo para a plenitude da democracia está justamente em Washington, na residência oficial do Presidente dos Estados Unidos. É então surpreendente e notável que, às vésperas de uma eleição que contará com a candidatura de um expoente da extrema-direita, um filme americano construa sua diegese em torno da distopia do extremismo no poder. O governo em “Guerra Civil” está totalmente corrompido, o que já fica evidente quando, em meio à repressão violenta, vemos um plano carregado de ironia dos personagens em frente a um carro de polícia com os dizeres “Cortesia”, “Profissionalismo” e “Respeito”.



"Guerra Civil" (Civil War, 2024), de Alex Garland - © Ascot Elite Entertainment Group.
“Guerra Civil” (Civil War, 2024), de Alex Garland – © Ascot Elite Entertainment Group.

Igualmente curiosa é a conformação dada por Alex Garland (também roteirista do longa-metragem) para os grupos que se opõem ao poder ditatorial. As Forças Ocidentais, por exemplo, reúnem simplesmente o Texas e a Califórnia, os dois estados talvez mais politicamente antagônicos dos EUA. Se por uma lado esta escolha pode ser justificada (e é, pelo próprio realizador) por sua natureza mais complexa, que se recusa a aderir à configuração já presente no mundo e está mais interessada em propor uma discussão ampla, por outro o cineasta tem explicado também, de forma controversa, que o discurso aponta para a importância de lados contrários se unirem para derrotar o extremismo. Prefiro ficar com a primeira alternativa, mas desafiadora, do que com a segunda, que nega o fato de que, em sociedades muito polarizadas, em geral um dos lados é justamente aquele que defende a implantação de governos extremistas. Ou talvez, ironicamente, o diretor britânico não enxergue diferenças entre o Texas majoritariamente Republicanio e a Califórnia predominantemente Democrata. Esta seria uma leitura ainda mais cáustica, considerando que, pragmaticamente, os dois partidos se revezam há décadas no poder e compartilham das mesmas visões de mundo capitalistas, imperialistas e autoritárias. Para manter o poderio americano inabalado, até um ex-estado confederado e outro supostamente progressista se colocariam lado a lado.

Com a mesma energia, Alex Garland também direciona críticas contundentes à imprensa. Por exemplo, os protagonistas são retratados como pessoas que estão sempre em busca da imagem perfeita, da declaração mais impactante e dos acontecimentos mais trágicos. O filme não poupa um certo fetiche que o jornalismo nutre pelo desastre. Em um determinada cena, o grupo para em um posto de gasolina de uma área rural, e são recebidos por homens armados. Quando Jessie sai para ver algo que chamou sua atenção nos fundos do local, ela encontra duas pessoas penduradas em ganchos, e ouve de um dos homens do posto que os cativos são saqueadores mantidos sob tortura. É então que Lee, ao invés de simplesmente ir embora, pede para tirar uma foto dos presos juntos de seu algoz. Mais do que apenas uma forma de escapar de uma situação potencialmente perigosa, a atitude da personagem demonstra uma frieza que valoriza mais o registro do que a ação. Como a própria protagonista diz, “Nós [os fotógrafos] não perguntamos. Nós registramos para que outras pessoas perguntem”. Em outro momento, Jessie acompanha um grupo de militares das forças dissidentes à medida que eles tomam um prédio ocupado por combatentes leais ao governo ditatorial. Quando um dos resistentes é morto, vemos ele ser socorrido por colegas enquanto Lee e Joel olham e Jessie fotógrafa, impassível, a morte do homem, sem nenhum dos jornalistas sequer cogitar oferecer alguma ajuda.

A partir disso, o filme tece interessantes comentários, que permeiam talvez uma das mais intrincadas discussões teóricas nos campos da comunicação e do jornalismo: o jornalista pode, ou deve, se envolver ativamente nos fatos que narra, ou ao fazer isso ele estaria modificando a realidade e deixando seus interesses interferirem nos acontecimentos? Não por acaso, a última sequência do filme traz talvez os mais inspirados momentos de “Guerra Civil”. No primeiro deles, provavelmente inspirado em “Blow-Up – Depois daquele beijo” (1966), vemos a morte de uma personagem através das sucessivas fotos de uma câmera. Já na cena final, acompanhamos enfim o encontro dos personagens com o presidente, e o breve diálogo entre ele e o personagem de Wagner Moura é talvez o mais incendiário do filme, preciso e ousado na tradição de filmes como “Rede de Intrigas” (1976).

"Guerra Civil" (Civil War, 2024), de Alex Garland - © Ascot Elite Entertainment Group.
“Guerra Civil” (Civil War, 2024), de Alex Garland – © Ascot Elite Entertainment Group.

Mas não apenas de discursos vive “Guerra Civil”. O diretor, ao lado do montador (Jake Roberts, que colaborou com Alex Garland em “Men: Faces do Medo”) consegue tornar o longa um competente filme de suspense e ação. Destaco a cena na qual os protagonistas encontram soldados nacionalistas e xenofóbicos. Para além da exemplar abordagem dada à noção que os estadunidenses têm de quem pode ser de fato considerado “americano”, a cena funciona muito bem em termos da criação da tensão, do ritmo distendido e da manipulação das expectativas do público em relação ao que pode acontecer. Já a sequência final, que culmina com a chegada dos personagens à Casa Branca, impressiona pelo dinamismo da montagem, pela ótima coreografia dos tiroteios e fugas e, sobretudo, pela clareza com a qual a narrativa é estruturada, de modo que o público não fique confuso ou perdido sobre quem está presente, em qual ponto e fazendo exatamente o quê.

Aliás, a montagem parece ser um dos pontos fortes do longa. O diretor e o montador investem em cortes precisos, um sinal de confiança na capacidade do público de realizar as devidas conexões sobre o que se passa. Esse tipo de edição fica visível quando os personagens chegam a uma pequena cidade que aparentemente ignora o conflito e, dentro de uma loja, Jessie questiona se Lee não pode abaixar um pouco a guarda e provar um vestido. O plano imediatamente seguinte já mostra a personagem de Kirsten Dunst experimentando a peça, indicando que sim, a personagem se dispôs a relaxar por alguns instantes. O recurso é usado de modo parecido, mas com um objetivo ligeiramente diferente mais tarde, quando a garota pergunta à fotojornalista se ela registraria uma foto dela morta. Lee responde algo como “O que você acha?”, e instantaneamente o filme corta para a continuação do trajeto de carro dos personagens. Ou seja, aqui a montagem dinâmica foi usada tanto para manter a ambiguidade de uma resposta quanto para realçar a fala da personagem. Antes, na cena do assalto ao prédio, o filme já havia se utilizado da montagem abrupta, mas desta vez para efeito de choque. Saímos de uma cena noturna e silenciosa para, no plano seguinte, estarmos justamente no edifício invadido, à luz do dia, com tiros, granadas e explosões.

Mas talvez esta última cena seja a que mais exemplifica um dos grandes defeitos do filme, que reside no uso da trilha sonora. Existe um descompasso gritante entre as músicas tocadas e a ação diegética. São diversos os momentos em que, sobrepostas a cenas de tiroteios, mortes e fugas, aparecem canções pop ou de rock muito energéticas, que acabam soando totalmente estranhas ao sério quadro se desdobrando à frente do público. A partir disto, “Guerra Civil” parece ter dificuldades de encontrar um tom coeso ao longo do filme. Há várias cenas que parecem tão deslocadas do tema geral a ponto de nos questionarmos qual de fato é sua validade dentro do longa. É o caso do trecho em que dois colegas jornalistas do grupo (nunca antes mencionados ou apresentados, diga-se de passagem) aparecem e um deles, sem razão alguma, resolve passar para o carro dos protagonistas pelas janelas, com os dois veículos ainda em movimento. Não bastasse isso, Jessie, na sequência, decide fazer o mesmo, se arriscando ao passar para o carro de um completo desconhecido Há algo de ridículo, tolo e infantil na cena que não encontra correspondência em nenhuma outra do filme.

"Guerra Civil" (Civil War, 2024), de Alex Garland - © Ascot Elite Entertainment Group.
“Guerra Civil” (Civil War, 2024), de Alex Garland – © Ascot Elite Entertainment Group.

 

A propósito, é intrigante perceber como estes dois personagens, ambos asiáticos, são introduzidos em uma situação absurda que parece mera justificativa para colocá-los dentro da história, como se tudo não passasse de um desdobramento de fatos que precisa acontecer porque assim diz o roteiro. Tony (Nelson Lee) e Bohai (Evan Lai) acabam sendo apresentados para que sejam eles as vítimas do soldado racista, e não alguém do trio principal. Já Sammy, a única pessoa negra do filme, também sofre o mesmo destino, justamente ao tentar salvar os protagonistas. Ao se valer novamente do tropo da figura minoritária que se sacrifica para que os brancos sobrevivam, Alex Garland está dando um passo atrás tanto na ousadia de seu roteiro quanto na própria coerência de sua crítica ao nacionalismo branco estadunidense.

Para além do desencontro na trilha e nesse discurso que transparece a partir do destino de alguns personagens, “Guerra Civil” também não consegue manter uma unidade estética quando se fala da visualidade. A cinematografia exacerba nos retoques digitais, que são de fato necessários para a construção daquele mundo quase apocalíptico, mas que tornam tudo mais irreal, como se estivéssemos dentro de um jogo. Poucas imagens têm real textura e contraste, mas todo o filme apresenta quadros com muito brilho e flares em excesso, indo na contramão da forte temática do filme. Assim como a trilha, seria possível dizer que esta escolha de cinematografia se deve a uma contraposição deliberada do horror da guerra a uma proposta visual mais conceitual, que aposta na plasticidade das imagens (algumas delas de fato muito belas, como no caso da maioria das cenas noturnas). Mas, por quê fazer isso? Apenas pelo choque gratuito de tema e forma? Outra alternativa para explicar tal escolha poderia ser o estilo do diretor, que já demonstrou, em filmes como “Men: Faces do Medo” (2022), um apreço muito grande pela natureza e por uma direção de fotografia com tons frios e pouca profundidade de campo. No entanto, o filme também não aparenta se apropriar disso enquanto discurso, já que este não é um longa, por exemplo, sobre a destruição ambiental causada por conflitos armados. Não existe uma combinação de todas essas contradições de maneira orgânica, a exemplo de filmes como “Apocalypse Now” (1979) ou “Vá e Veja” (1985), o que faz com que convivam, às vezes na mesma cena, feixes de luz, bombas explodindo e pessoas gritando, em quadros cuja escolha e o arranjo de elementos  soa aleatória.

Apesar destes problemas, “Guerra Civil” é um filme que se destaca pela originalidade da ideia e pela força do retrato que faz da guerra. Há cenas de pessoas vomitando e sendo atropeladas por carros, mas nada disso parece gratuito. Pelo contrário, assim como um shot pode ser uma fotografia ou um tiro, pode ser também um plano. Alex Garland está falando então, de forma metalinguística, sobre o quanto o próprio cinema e as imagens em movimento no geral exploram e capitalizam em cima do sofrimento causado por conflitos armados. Kirsten Dunst, aqui mais estoica do que nunca, e desta vez também cínica, entrega uma performance cuja força está nos olhares sutis e no semblante pesado. Já Cailee Spaeny e Wagner Moura estão bem, embora em papeis que apelam bastante para os clichês, respectivamente da pupila inexperiente que vai amadurecendo e do profissional endurecido e frequentemente alcoolizado. Jesse Plemons, em uma participação marcante, se vale de sua voz e da velocidade a partir da qual entrega as frases para construir uma figura assustadora.

"Guerra Civil" (Civil War, 2024), de Alex Garland - © Ascot Elite Entertainment Group.
“Guerra Civil” (Civil War, 2024), de Alex Garland – © Ascot Elite Entertainment Group.

Com vários símbolos relevantes para a cultura e a política norte-americanas, como as repetidas menções à cidade de Charlottesville e ao Quatro de Julho, “Guerra Civil” é um filme que certamente vai ressoar muito mais fortemente entre os estadunidenses. No entanto, o que o longa tem a dizer (e ele certamente tem muitas coisas a dizer) sobre as relações entre a guerra e os registros, e a forma enérgica que a obra adota para atingir o espectador sem dúvida é capaz de impactar públicos de toda parte. Na verdade, depois deste filme, nunca mais vou esquecer o quão próximos, no cinema e na vida, podem estar um tiro e uma fotografia. ■

crítica filme guerra civil

Nota:

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GUERRA CIVIL (Civil War, 2024, EUA). Direção: Alex Garland; Roteiro: Alex Garland; Produção: Andrew Macdonald, Allon Reich, Gregory Goodman; Fotografia: Rob Hardy; Montagem: Jake Roberts; Música: Ben Salisbury, Geoff Barrow; Com: Kirsten Dunst, Wagner Moura, Cailee Spaeny, Stephen McKinley Henderson, Sonoya Mizuno, Nick Offerman; Estúdio: DNA Films, IPR.VC; Distribuição: A24, Diamond Films; Duração: 1h 49min.

crítica filme guerra civil

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