"Uma Família Feliz" (2024), de José Eduardo Belmonte - Divulgação
"Uma Família Feliz" (2024), de José Eduardo Belmonte - Divulgação

“Uma Família Feliz”: A fragilidade e a destruição das aparências da “família tradicional brasileira”

José Eduardo Belmonte (“Se Nada Mais Der Certo”, “As Verdades”) dirige “Uma Família Feliz” (2024), adaptação do livro de mesmo título escrito por Raphael Montes. O primeiro aspecto a se ressaltar é o roteiro, que funciona muito bem, utilizando elementos de construção narrativa característicos do cinema de gênero, mantendo a atenção do espectador da primeira à última cena. Demonstrando domínio e profundo conhecimento da trama e dos personagens, Montes, que também é o roteirista deste longa, conduz a história de Eva (Grazi Massafera) e Vicente (Reynaldo Gianecchini), um casal com duas filhas gêmeas e um bebê recém-nascido. A família, aparentemente perfeita, começa a viver conflitos, enquanto Eva enfrenta uma depressão pós-parto. Outros problemas emergem em meio a culpa e desconfiança, levando à trágica destruição da família.

É interessante ver uma obra nacional explorando o gênero de suspense, onde além do roteiro, a tensão também se manifesta nas escolhas estéticas, trilha sonora, fotografia, movimentos de câmera e enquadramentos que revelam e ocultam elementos-chave em cada uma das cenas ao longo do filme. Estas escolhas estilísticas flertam com características do gênero de terror, potencializando o suspense presente durante toda a história. Há também vários momentos de silêncio entre os personagens, que permitem que o espectador reflita e questione os acontecimentos do filme, em cenas de cotidiano que aparentemente são simples, mas se revelam repletas de detalhes que caracterizam a ambientação e atmosfera de investigação e desconfiança necessária para a tensão que a obra exige.

Logo na primeira cena, já sabemos que um crime chocante foi cometido, e que a mãe, Eva, é a principal suspeita (ou no mínimo, cúmplice) do acontecimento. O enredo nos leva ao passado para investigar, decifrar e compreender o que levou à destruição dessa família, mantendo nossa atenção voltada para Eva. A narrativa se desenrola pela rotina “normal” e idealmente perfeita do núcleo familiar, enquanto buscamos por sinais, nos perguntando a todo momento: O que levou a mãe fazer o que fez? O que realmente aconteceu? Gradualmente, o filme vai revelando de forma sutil outras informações relevantes para o entendimento de tudo que está por trás da tragédia já anunciada.



O nome “Eva”, carrega significados históricos, remetendo a um contexto cristão, com o peso da culpa da ambiguidade da mulher que gera vida, mas que também falha e causa a “expulsão do Paraíso”. O filme provoca uma reflexão sobre a maternidade e a pressão social que a acompanha, especialmente na responsabilidade dos cuidados com o filho recém-nascido. Mesmo com o pai presente e “ajudando” nestes momentos pontuais, há claramente uma sobrecarga atribuída à mãe nesta tarefa. Eva sofre de depressão pós-parto e entra em conflito com as filhas gêmeas e o marido.

"Uma Família Feliz" (2024), de José Eduardo Belmonte - Divulgação
“Uma Família Feliz” (2024), de José Eduardo Belmonte – Divulgação

A função de “ser mãe” preenche todo o tempo de Eva, e que mesmo cansada, ainda precisa trabalhar. Curiosamente, ela trabalha fabricando bonecos realistas de bebês reborn. Criando assim, um paralelo na narrativa, com os cuidados (ou a falta deles) da mãe pelo filho, enquanto ela manuseia, molda, costura, pinta, os bonecos bebês reborn. Tanto o seu trabalho, quanto o seu lugar afetivo, estão direcionados para o mesmo “objeto”: o bebê recém-nascido. Em um determinado momento do filme, Vicente faz um julgamento em relação ao trabalho de Eva, e diz para a criança: “Alguém tem que trabalhar de verdade enquanto sua mãe brinca de boneca, né filho?”.

Conforme o filme avança, as relações dentro de casa vão se intensificando e complexificando. Descobrimos a verdade sobre a relação da mãe com as filhas gêmeas, e que uma delas está passando pelo tratamento de um tumor. Com a suspeita de que a mãe estaria agredindo o filho recém-nascido e as filhas gêmeas, o núcleo familiar se desfaz. Suspeitas e desconfianças provocam a destruição da família, e a trama nos coloca também no mesmo lugar de julgamento e desconfiança, inclusive em relação ao pai e sua relação de intimidade e cuidado com as filhas.

"Uma Família Feliz" (2024), de José Eduardo Belmonte - Divulgação
“Uma Família Feliz” (2024), de José Eduardo Belmonte – Divulgação

A família que antes aparentava ser perfeita, agora quase totalmente desmascarada, também passa a ser alvo do julgamento dos amigos/vizinhos. É impressionante a facilidade em que os “amigos” julgam e excluem Eva antes mesmo de saberem a verdade sobre as acusações que estão sendo feitas. Neste momento, ainda que tudo indique a mãe como culpada, percebemos a fragilidade da mulher, que cansada e desamparada, é um alvo fácil para culpabilizar e responsabilizar por todas as falhas de uma família. Estes amigos da família de Eva e Vicente, aparentemente fazem parte de um grupo de famílias que seguem o mesmo padrão (pai, mãe, filhos), e que mantém essa imagem e máscara social, em que todos fazem parte da classe média alta, morando no mesmo condomínio, com as casas de estilo “clean” e uma falsa sensação de segurança.

Há uma cena pós-créditos, que causa opiniões controversas, mas explicita mais uma vez a crítica que o filme faz. Na cena, os personagens estão em casa com uma bandeira do Brasil pendurada em sua varanda, simbolizando o específico grupo de brasileiros que podemos observar o mesmo comportamento hipócrita de valorização e reprodução deste estilo de vida da sociedade das aparências, do conservadorismo e da expressão “família tradicional brasileira”.

Com atuações brilhantes de Reynaldo Gianecchini e, principalmente, de Grazi Massafera, a obra mantém o espectador intrigado e tenso até o momento da revelação do que realmente estava por trás dos acontecimentos trágicos em torno dessa família perfeita. É sempre muito empolgante observar a potência do cinema nacional, e “Uma Família Feliz” é um excelente filme de gênero de 2024. ■

filme uma família feliz

Nota:

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UMA FAMÍLIA FELIZ (2024, Brasil). Direção: José Eduardo Belmonte; Roteiro: Raphael Montes (baseado em seu próprio livro); Produção: Juliana Funaro, Krysse Mello, René Sampaio; Fotografia: Leslie Montero; Montagem: Jota Santos; Música: Julia Teles; Com: Grazi Massafera, Reynaldo Gianecchini, Luiza Antunes, Juliana Bim; Estúdio: Barry Company; Distribuição: Pandora Filmes; Duração: 1h 50min.

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