"Bird" (2024), de Andrea Arnold - Ad Vitam production/Divulgação
Ad Vitam production/Divulgação

“Bird”: Um cinema que voa | Cannes 2024

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A primeira imagem de “Bird” é o plano de um pássaro voando contra o céu. Além disso, um dos personagens do filme se chama Bird e se comporta como uma ave. Pode parecer que a cineasta inglesa Andrea Arnold use isso como uma metáfora óbvia e banal – mas não é o caso. Não é fácil discernir exatamente o que os pássaros representam no longa. Uma interpretação possível, no entanto, é que eles são animais frágeis, mas ainda que estejam estropiados, podem voar. Mesmo com as asas quebradas, contêm dentro de si a habilidade de erguer voo. É esse potencial de se alçar, de voar, de erguer-se acima do tormento e das atribulações terrenas que Arnold enxerga nos seus personagens, especialmente na sua protagonista – e que vem a ser o grande trunfo do seu longa, o primeiro grande candidato à Palma de Ouro do 77º Festival de Cannes.

“Bird” pode começar como mais um “filme de gente pobre na Europa” – a exemplo do seu concorrente “Diamant Brut”, com o qual guarda uma série de similaridades. Ao contrário da produção dirigida pela estreante Agathe Riedinger, porém, o longa inglês não filma os personagens e seu universo com abjeção e julgamento. Arnold e sua diretora de fotografia habitual, Robbie Ryan, seguem a trama e a protagonista com a mesma câmera  documental e naturalista de seus trabalhos anteriores. Mas ela sabe que o que está fazendo é cinema. E cinema permite fabular, permite fantasia e beleza, mesmo nos lugares mais impossíveis – e a capacidade de encontrar essa beleza nos cantos e momentos mais improváveis é a marca registrada que tem feito da diretora um dos nomes mais instigantes do cinema atual.



Esse talento e o olhar documental não são os únicos traços herdados dos longas anteriores: assim como “Aquário” e “Docinho da América”, “Bird” é centrado na relação entre uma menina jovem e um homem mais velho. O filme acompanha Bailey (a estreante Nykiya Adams), indômita garota de 12 anos que mora com o pai Bug (Barry Keoghan) e o meio-irmão Hunter (Jason Buda), prestes a repetir o mesmo ciclo de paternidade adolescente dos pais, num prédio abandonado e pichado na periferia pobre de Kent (cidade-natal de Arnold). Quando o progenitor anuncia que vai se casar com a namorada, a protagonista teme estar perdendo a única (e pouca) segurança que tem na vida, revoltando-se contra a união e aproximando-se do estranho Bird (Franz Rogowski), que chega no bairro à procura da família da qual se perdeu ainda criança. Bailey decide ajudá-lo, forjando uma relação que parece perigosa e imprópria no início, mas que ao contrário dos dois filmes anteriores da cineasta, não se revela nada sexual. Os dois são apenas um casal de passarinhos feridos pela vida que se reconhecem mutuamente.

As alegorias animais não param por aí. Bug é o sapo que ele usa para produzir e traficar drogas – um pouco repugnante de início, mas inofensivo e bem intencionado. Se as condições de vida da protagonista com ele parecem precárias, quando o longa introduz a mãe Peyton (Jasmine Jobson), representada pelo cãozinho indefeso abusado por seu namorado, o prédio abandonado do pai parece um palácio. Com “Bird”, “Diamant Brut” e “Pigen med nålen”, aliás, esta edição de Cannes tem sido marcada por pais (e mães) imperfeitos tentando fazer seu melhor – o que nem sempre é o bastante.

"Bird" (2024), de Andrea Arnold - Ad Vitam production/Divulgação
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“Bird” ainda tem cavalos, peixes e borboletas – afinal, é essencialmente um coming of age – e Arnold recorre à beleza natural deles para mostrar que, se seus personagens também são animais, eles/as todos/as contêm beleza dentro de si. Essa metamorfose homem-bicho é perfeitamente evidenciada na performance do sempre excelente Rogowski, ex-dançarino que movimenta seu corpo o tempo todo como um pássaro e invariavelmente fica à espera de Bailey no alto de um prédio, apoiado ou sentado como a ave.

O maior mérito da performance do ator alemão, porém, é sua generosidade ao contracenar com a incrível Nykiya Adams. Ele sabe que o filme é dela e não tenta roubá-lo. Assim como a direção de Arnold, ele cria espaço e segurança, apoio e reciprocidade para que ela brilhe e conquiste o público, como conquista Bird. A cena no mar – meio sujo, frio, inglês e decrépito, como o resto daquele universo –, em que Bailey mergulha e se emociona ao ver peixes, é de uma beleza de tirar o fôlego e resume a poesia, e a poética, com que a cineasta filma suas histórias.

Essa alegria inesperada também se manifesta no uso da música no filme, que vai do rap a Coldplay, Blur e The Verve. Nunca óbvias ou expositivas, as canções servem para dizer muito sobre aqueles personagens, nem sempre capazes de se expressar articuladamente, e não para explicar ou ilustrar a história. A transição de canções mais associadas à periferia para outras mais pop também marca a diminuição do ritmo do longa, que começa caótico, quase desorientado, e vai se acalmando e ficando gradualmente mais emotivo. “Bird” é a história de uma menina crescendo, talvez cedo demais, e aprendendo que na vida adulta, as coisas se quebram e nem sempre têm conserto – e a gente tem que continuar vivendo mesmo assim. É duro, é difícil e é injusto – mas no cinema, pelo menos, Andrea Arnold encontra alguma beleza e poesia nisso.

Nota:

Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.

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