"Le Deuxième Acte" (2024), de Quentin Dupieux - Arte France Cinéma/Divulgação
"Le Deuxième Acte" (2024), de Quentin Dupieux - Arte France Cinéma/Divulgação

“O Segundo Ato”: O algoritmo sempre vence | Cannes 2024

abertura cannes 2024

Uma das tretas mais ridículas e desnecessárias da contemporaneidade é a recusa do Festival de Cannes em exibir filmes produzidos pela Netflix – ao menos em competição. Com “Le Deuxième Acte” (ou “O Segundo Ato”), Thierry Frémaux – o temido diretor do evento – conseguiu unir o útil ao (des)agradável: exibir um longa com o selo da atual major do mercado audiovisual que, de certa forma, é uma crítica às produções concebidas e configuradas por algoritmos que inundam a plataforma.

Essa ironia talvez seja o elemento mais (e talvez o único realmente) engraçado do longa dirigido pelo francês Quentin Dupieux (“Yannick”). Seguindo a maldição dos tenebrosos filmes de abertura da Croisette (uma lista que inclui bombas recentes como “The Dead Don’t Die” e “Jeanne du Barry”), “Le Deuxième Acte” tenta ser um retrato dos bastidores de uma filmagem e um comentário metalinguístico sobre o processo criativo no cinema – motivo que provavelmente lhe rendeu o carro abre-alas de Cannes, o festival cinéfilo por excelência. Contudo, ao contrário da longa tradição de produções do gênero, de “Cantando na Chuva” a “Noite Americana”, a comédia francesa parece não saber o que quer dizer sobre o  tema, com um dispositivo promissor, mas mal desenvolvido, que se perde entre personagens aborrecidos, piadas sem graça e cenas desnecessariamente longas. 



"Le Deuxième Acte" (2024), de Quentin Dupieux - Arte France Cinéma/Divulgação
“Le Deuxième Acte” (2024), de Quentin Dupieux – Arte France Cinéma/Divulgação

O filme começa com um interminável diálogo em plano-sequência entre os amigos David (Louis Garrel) e Willy (Raphael Quënard) – o primeiro quer que o segundo transe com sua namorada porque, por um motivo que nunca fica muito claro, ele não consegue fazê-lo. Logo, porém, fica óbvio que isso pouco importa porque Willy começa a fazer uma série de piadas homo e transfóbicas, e David quebra a quarta parede dizendo que ele não pode falar esse tipo de coisa na frente das câmeras. Os dois personagens são atores fazendo um filme e vão interromper o “roteiro” dessa produção o tempo todo para regurgitar suas neuroses em diálogos mezzo cinema francês mezzo Woody Allen de quinta categoria – o mesmo acontecendo com Florence (Léa Seydoux) e Guillaume (Vincent Lindon), os atores que interpretam, respectivamente, a namorada do personagem de David e o pai dela. 

Em menos de dez minutos de projeção, “Le Deuxième Acte” alicerça seu humor nessas piadas – fracas e óbvias – homo e transfóbicas, às quais se juntarão, durante a 1h30 seguinte, ofensas capacitistas, racistas e afins. A “licença” que o longa se dá para tamanha incorreção política é justificada por um deus ex machina que prefiro não revelar aqui e que diz respeito ao diretor e roteirista do tal filme sendo feito. O problema é que esse dispositivo metalinguístico é cheio de buracos e inconsistências – a equipe filmando os quatro atores nunca aparece, e não fica claro quem, além dos protagonistas e do figurante Stéphane (Manuel Guillot), faz parte da produção ou não. 

Isso é um sintoma da maior fragilidade do filme: Dupieux parte de uma boa ideia, mas não a desenvolve de forma satisfatória, confiando exclusivamente no seu bom elenco e em personagens que não são tão interessantes quanto ele imagina. Com isso, a metalinguagem de “Le Deuxième Acte” não tem um porquê para além de servir como desculpa para piadas tão sem graça quanto ofensivas, que provavelmente não poderiam ser ditas de outra maneira. O longa não sabe se quer ser um comentário sobre a frivolidade e a hipocrisia dos atores, ou sobre o cinema contemporâneo, feito de forma corporativa e algorítmica, porque todas essas propostas ficam pela metade, prenhes de um potencial não totalmente explorado. 

Quem salva a produção de ser uma bomba completa ou intragável é o bom elenco. Com exceção de Garrel, que acha que fazer comédia é gritar seus diálogos pra ver se eles melhoram, os atores carregam algumas longas cenas filmadas em planos únicos explorando o lado mais desagradável de suas personas públicas por meio de uma mise-en-scène e um ritmo quase teatrais. O resultado vai ficando progressivamente cansativo, mas quando funciona, é graças a eles. 

A ironia é que no seu humor preguiçoso e caricato, no seu visual genérico e no seu roteiro mambembe, carregado por um elenco estrelado, “Le Deuxième Acte” é o tipo de filme que pode fazer muito sucesso quando estrear na Netflix. Na ausência de um ponto de vista claro e realmente subversivo, Dupieux pode pensar que está fazendo uma crítica ao algoritmo, mas está simplesmente retroalimentando-o.

Nota:
"Le Deuxième Acte" (2024), de Quentin Dupieux - Arte France Cinéma/Divulgação
Arte France Cinéma/Divulgação
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.

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