“Feng liu yi dai” (“Caught by the tides” no título internacional, ou “Apanhados pela maré”, em português), novo longa do aclamado Jia Zhangke, é uma história de amor contada em três atos. Em 2002, Qiaoqiao (Zhao Tao) é uma aspirante a dançarina e performer envolvida com Bin Guo (Li Zhubin). Quando ele vai trabalhar na demolição de uma aldeia prestes a ser inundada por uma represa no interior da China, os dois se desentendem, Bin para de responder às mensagens e ligações dela, que vai atrás dele, mas o casal acaba se separando. Vinte anos depois, em meio à pandemia do Covid-19 no país, os dois se reencontram.
Pode parecer um “Antes do Amanhecer” chinês, mas não é. “Caught by the tides” é um filme de Jia Zhangke. O que significa que a trama acima pouco – ou quase nada – importa. Porque o diretor chinês não faz um cinema de prosa, mas de poesia. A história é uma mera desculpa para o cineasta explorar as transformações de seu país com um olhar terno e minucioso, documental e onírico, em longos planos e cenas em que ficção e documentário se misturam de forma quase indiscernível, com o significado nascendo menos do conteúdo das diferentes sequências, mas da justaposição e diálogo entre elas.
Esse amálgama de documentário e ficção, ou documentário e poesia, é evidenciado na própria textura e na janela da fotografia. No primeiro terço do filme, mais centrado na carreira e nas ambições de Qiaoqiao, Zhangke mistura as performances da protagonista com registros que ele mesmo fez, em vídeo, de um centro cultural chinês abandonado e de diversas pessoas cantando ou se apresentando. Já no segundo ato, o olhar do cineasta se volta para a magnitude do interior do país em transformação, por meio de longas e lentas panorâmicas, com cidades inteiras em ruínas, índices de um passado em extinção e de um futuro que ainda não chegou – um presente em transição. Já o ato final é marcado pelas máscaras, protocolos de segurança e pela crise econômica da pandemia (e pelo Tik Tok), um passado recente inconfundível para quem o viveu.
“Caught by the tides” aproveita essa sobreposição de encenação e registro para retratar as contradições da China, sem necessariamente julgá-las ou apresentar uma tese a respeito. E se o cineasta traz esse olhar documental, a poesia fica por conta, principalmente, da trilha musical e da performance sublime de Zhao Tao. Esposa e parceria criativa de Zhangke de longa data, a atriz – que não profere uma palavra durante todo o filme, numa atuação completamente silenciosa – entende o cinema do diretor como ninguém, e o completa. Especialmente na primeira parte, sua Qiaoqiao se movimenta o tempo todo como numa coreografia de dança, nunca artificial, mas sempre conferindo uma certa graciosidade onírica às cenas. Seu gesto de elevar a blusa sobre a cabeça para se proteger do sol ou da chuva se repete nos três momentos do longa e diz muito da personagem, assim como os olhos fortes e melancólicos de Tao, sempre carregando uma mágoa ou uma dor indecifrável, não precisando de uma palavra para expressar o que deseja.
Já a trilha musical recorre a uma série de canções populares chinesas para acompanhar algumas das sequências. Se Zhangke filma com um olhar quase impassível, as músicas conferem um ritmo e uma beleza ao encadeamento das imagens, indo da melancolia ao romântico e ao nostálgico. O resultado permite esse casamento esse diálogo entre o documental e a ficção pretendidos pelo cineasta – com o específico do romance sendo (res)significado e embalado pelos sons da cultura tradicional chinesa.
Nesse sentido, todo o trabalho de mixagem e edição de som do filme é preciso e fundamental, imergindo o/a espectador/a naquele universo tão único e estrangeiro, mesmo quando o olhar e a mise-en-scène de Zhangke parecem distantes e herméticos demais. No fim, “Caught by the tides”, assim como as obras anteriores do cineasta, é um convite a uma experiência imersiva e sensorial nos sons, cheiros, no ritmo e nas sensações da China contemporânea, em que cada sequência parece o verso de uma poesia ou uma canção, e cada um dos três atos é uma estrofe. Como num poema, o significado talvez importe menos que os sentimentos e emoções despertados pela belíssima dança de Zhao Tao com um robô ou pelos olhos da atriz dizendo tanto sem falar nada nos closes filmados por seu marido.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.