a filha do palhaço
*“Vejam só que história boba
Eu tenho pra contar, quem é que vai querer me acreditar
Eu sou palhaço sem querer”
Ao explorar a ambiguidade do imaginário da figura do palhaço, que carrega a dualidade da felicidade e tristeza, euforia e melancolia, humor e drama, o diretor Pedro Diogenes nos conta sobre a vida de Renato (Demick Lopes), protagonista no filme “A Filha do Palhaço”. A personificação do palhaço que se torna um espelho das emoções humanas, como uma máscara por trás da qual se escondem a dor e a solidão do personagem, remetendo à referenciais de arquétipos do “palhaço triste”, desde Pierrot à Charlie Chaplin, e até mesmo Didi Mocó, de Os Trapalhões, com grandes sucessos de bilheteria na história do cinema brasileiro (e se assemelhando ao protagonista tanto fisicamente quanto pelo nome do Renato Aragão). Mas o filme tem sua maior referência e homenagem à “Raimundinha”, personagem do humorista Paulo Diogenes, primo do diretor do longa, que faleceu em 2024.
“A Filha do Palhaço” é um filme de drama, que funciona como um estudo de personagens e das relações entre eles, em uma comovente história que se desenrola nas ruas de Fortaleza, Ceará. A trama gira em torno da adolescente Joana (Lis Sutter), que passa a conviver pela primeira vez com seu pai, Renato (Demick Lopes), um humorista que encarna a personagem Silvanelly em seus shows de stand-up.
*“Vejam só que coisa incrível
O meu coração todo pintado
E nesta solidão espero a hora de sonhar”
A essência do longa reside no encontro e na complexa relação de estranhamento e afeto entre pai e filha. Através de momentos da reconstrução de uma intimidade entre os personagens, que descobrem uma nova profundidade em sua conexão, revelando coisas não ditas por meio de gestos e olhares. Testemunhamos o amadurecimento, tanto individual, quanto da nova relação, culminando em cumplicidade e admiração mútua. Esta dinâmica da relação entre o pai e a filha que buscam algum sentido em uma conexão e reaproximação entre eles, é um tema forte já abordado também em outras obras de grande relevância no cinema recente, como “Aftersun” e principalmente “A Baleia”, ambos de 2022, assim como “A Filha do Palhaço” (o filme brasileiro foi lançado em festivais dois anos antes de chegar aos cinemas comerciais).
O drama de um filme focado em seus personagens exige que as atuações estejam muito bem alinhadas ao tom da narrativa, o que no caso deste filme, este equilíbrio se perde em alguns momentos de reações mais expansivas. Demick Lopes mantém uma excelente atuação do inicio ao fim, e Lis Sutter se encaixa perfeitamente nos momentos de uma atuação mais contida e intimista.
*“Ah, o mundo sempre foi um circo sem igual
Onde todos representam bem ou mal
Onde a farsa de um palhaço é natural”
O filme também levanta questões sobre a libertação versus a humilhação de artistas queer através de diferentes olhares lançados à performance de Silvanelly, pela subtrama envolvendo o stand-up drag queen. A narrativa passa por comentários sobre as lutas enfrentadas por artistas LGBTQ+ em busca de dignidade e reconhecimento, destacando a solidão e a marginalização que muitas vezes acompanham a expressão de sua identidade. Exatamente por sua sexualidade e desvalorização de sua arte, o personagem Renato perde o contato com sua filha e sua ex-esposa. Outros atores/palhaços surgem pelo filme, em busca de oportunidades para exercerem seu trabalho. Em uma cena de um dos encontros entre o protagonista e o personagem de Jesuíta Barbosa, eles cantam um trecho da música “Sonhos de Um Palhaço” de Antônio Marcos.
Mais à frente na narrativa, o filme faz questão de nos lembrar que a beleza de uma relação com a potência de se restabelecer, não minimiza a culpa e o peso da ausência paterna, e da falta da responsabilidade de cuidar da filha durante a vida. Quando Joana, ao ter uma reação alergia, vai para o hospital, Renato não sabe responder sobre o histórico de saúde da própria filha. Isso nos faz refletir sobre o verdadeiro significado de ser pai e o papel da mãe na dinâmica familiar dos personagens (a mãe que se ausenta durante o filme, mas que esteve presente durante toda a vida da filha, e que com firmeza tenta colocar limites na proximidade da filha com o pai).
*“Ah, no palco da ilusão pintei meu coração
Entreguei, entreguei amor e sonhos sem saber
Que o palhaço pinta o rosto pra viver”
“A Filha do Palhaço” é uma obra cinematográfica comovente e complexa na dinâmica entre seus personagens, e destaca-se pela atuação marcante de Demick Lopes. Com uma estética realista e uma fotografia com luzes e cores vibrantes, características do contexto em que o personagem está inserido, o filme nos lembra que, por trás da máscara, da pintura facial, da arte, há sempre uma pessoa com suas próprias dores e sonhos. Em sua cena final carregada de emoção, o “palhaço” se desmonta no palco ao som de vaias da plateia, e com um gesto de reconhecimento e admiração da filha, conclui um belo arco de redenção, perdão e amor ao personagem. ■
*Trechos da música “Sonhos de Um Palhaço” (Antônio Marcos)
A FILHA DO PALHAÇO (2022, Brasil). Direção: Pedro Diogenes; Roteiro: Amanda Pontes, Michelline Helena, Pedro Diogenes; Produção: Amanda Pontes, Caroline Louise; Fotografia: Victor de Melo; Montagem: Victor Costa Lopes; Música: Cozilos Vitor, João Victor Barroso; Com: Lis Sutter, Demick Lopes, Jesuíta Barbosa, Jupyra Carvalho, Ana Luiza Rios, Valéria Vitoriano, Patrícia Dawson, Luiza Nobel, David Santos, Rafael Martins, Mateus Honori, Vic Servente, Jenniffer Joingley, Pipa, Patricia Nassi; Estúdio: Marrevolto Filmes, Pique-Bandeira Filmes; Distribuição: Embaúba Filmes; Duração: 1h 44min.
Crítico, roteirista e professor. Graduado em cinema e audiovisual pelo Centro Universitário UNA. Desde 2017 atuando de forma independente em: produção e curadoria em projetos de cineclubes; análise/crítica; comentários de filmes em mostras de cinema; roteiro; ensino sobre linguagem cinematográfica, escrita, artes e mídias.