"A Queda do Céu" (2024), de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha - Aruac Filmes/Divulgação
Aruac Filmes/Divulgação

“A Queda do Céu”: Cinema em transe | Cannes 2024

“A Queda do Céu” começa com um plano-sequência de vários minutos, em que um grupo de yanomamis caminha por uma longa estrada de terra. Inicialmente, filmados ao longe, eles parecem pequenos e distantes. Gradualmente, porém eles vão se aproximando da câmera, e do/a espectador/a, e se tornando maiores, grandes, imponentes no quadro. 

O plano sintetiza perfeitamente o gesto fílmico dos diretores Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha em seu documentário, exibido na Quinzena dos Realizadores do 77º Festival de Cannes. Inspirando-se no livro homônimo escrito pelo yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo franco-marroquino Bruce Albert, a dupla de cineastas intima o público a chegar o mais próximo possível da cultura e da filosofia riquíssimas da tribo por meio de uma associação entre um excelente trabalho de câmera e a potência do texto e do discurso do líder e xamã yanomami.

Kopenawa narra todo o filme, trazendo para a tela suas reflexões sobre a história de seu povo, sua relação com o homem branco, questões políticas e ambientais contemporâneas e a ameaça constante do garimpo enfrentada pela tribo. Cunha e Rocha, por sua vez, complementam e potencializam esse tratado filosófico com imagens que abusam de closes e planos super aproximados dos rostos e corpos dos yanomamis, buscando colocar o/a espectador/a o mais perto possível daquelas pessoas, seus costumes e rituais. 



"A Queda do Céu" (2024), de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha - Aruac Filmes/Divulgação
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“A Queda do Céu” se estrutura em torno dessa sinergia em que Kopenawa contribui com as ideias, e os dois documentaristas com a linguagem visual do longa, marcada ainda pela recorrência de tomadas do céu – espécie de representação imagética, e símbolo importante, da cosmologia yanomami – e por alguns belíssimos planos-sequência que são os momentos mais fortes do filme. Num deles, Kopenawa, acompanhado de outro membro da tribo, performa um ritual xamânico de invocação dos xapiri, espíritos milenares e ancestrais que protegem a floresta e todo o universo. Filmados contra uma fumaça vermelha e repetindo incessantemente um cântico monotônico, os dois colocam o longa – e o/a espectador/a – num transe quase hipnótico e transcendental. 

Em outra sequência, um ancião reconta a história da relação yanomami com a “civilização” branca e, a certa altura de sua fala, questiona o próprio gesto fílmico de Cunha e Rocha. Quando ele se pergunta se deve ou não deixar-se ser filmado, a dupla de diretores usa a luz para esconder o rosto dele quando a indagação é feita, e depois voltam a iluminá-lo quando o ancião argumenta a importância de comunicar e expor a cultura de sua tribo para o esforço de defendê-la e preservá-la diante da ameaça do garimpo, das doenças e do agronegócio.

Um grande mérito de “A Queda do Céu”, por sinal, é não recorrer, nem reproduzir, às imagens sensacionalistas que inundaram a imprensa brasileira no ano passado de membros da tribo em condições de desnutrição e à beira da morte. O filme tem o bom gosto de não apelar nem expor seus personagens, optando, em vez disso, por apresentar na tela as causas dessa tragédia: a fumaça tóxica que chega na aldeia vindo da atividade mineradora e a contaminação dos rios e da terra de onde os yanomami tiram seu alimento. 

Isso vem do princípio central, que claramente conduz toda a narrativa e a estética do documentário, de retratar Kopenawa e sua tribo não como vítimas, mas como fontes de uma sabedoria e uma erudição indispensáveis diante da atual catástrofe climática. Quando Kopenawa fala do mito yanomami da queda do céu logo no início do filme, é impossível não pensar na tragédia ocorrendo no Rio Grande do Sul no momento. E quando, próximo ao final, o líder e filósofo faz um manifesto sobre o que vai acontecer caso o homem branco não escute e não entenda o que os indígenas têm a nos ensinar sobre a preservação da natureza, o texto e a voz dele têm um tom épico e uma grande quase profética. 

Logo após a fala, Eryk Rocha demonstra o talento herdado em sua carga genética, com uma montagem de planos, trilha musical e efeitos sonoros que associam a alegoria épica de seu pai Glauber Rocha ao cinema experimental da mãe, Paula Gaitán. “A Queda do Céu” poderia acabar aí e já seria um grande filme, mas prefere terminar com a catarse do Reahu, ritual funerário e cerimônia mais importante dos yanomami – porque é essa beleza e essa riqueza cultural que o longa deseja captar, e que expõe na tela com respeito e competência.

Nota:

Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.