O cinema de Sean Baker (“Red Rocket”, “Tangerine”) é centrado em torno das pessoas vivendo à margem do sonho americano. Pode parecer um eufemismo pedante para “filmes sobre gente pobre”, mas é um pouco mais do que isso. Ele está interessado no contraste da riqueza opulenta e obscena convivendo lado a lado com a extrema precariedade, uma marca da economia e do capitalismo nos EUA – representado à perfeição na sequência final de “Projeto Flórida”.
No excelente e hilário “Anora”, o cineasta amplia um pouco esse olhar. O filme extrai grande parte de seu humor do choque entre a cultura russa, extremamente violenta e estratificada, em que os super ricos podem fazer e dizer o que querem sem maiores repercussões; e a norte-americana, em que a violência e a estratificação também existem, mas os pobres não têm medo de enfrentar, profanar e destronar quem está acima deles. Porque o princípio do sonho americano é que qualquer um pode (e deve) olhar para cima, querer ser mais do que é, chegar ao topo. Só depende de você e da sua ambição.
O resultado é uma espécie de “Uma Linda Mulher” que se transforma numa mistura de “Depois de Horas” com “Joias Raras” – e no longa mais engraçado da competitiva do 77º Festival de Cannes. A trama acompanha a stripper Ani (Mikey Madison) – a Anora do título – que, neta de russos e fluente na língua, é chamada para atender um cliente VIP da boate onde trabalha, Ivan (Mark Eydelshteyn), filho de oligarcas biliardários. O que começa com uma lap dance acaba se transformando numa conexão entre os dois. Ela passa a atendê-lo exclusivamente e, depois de algumas semanas de muito sexo, festas e viagens, eles acabam se casando em Las Vegas.
Quando os pais dele descobrem isso, porém, é que “Anora” começa de verdade. Até esse ponto, Ani e Ivan são claramente dois (pós-)adolescentes vivendo uma aventura e um sonho um tanto irresponsáveis. A diferença é que ela é uma adolescente forçada a trabalhar e encontrar uma forma (nada fácil) de pagar boletos e ganhar a vida. E ele não tem noção do que é dinheiro, responsabilidade ou vida real. Estar com Ivan é uma oportunidade de Ani ter (e sonhar com) tudo que nunca teve. Mas quando a família dele entra na história, os dois levam um choque de realidade que leva o filme para um caminho completamente inesperado.
Essa guinada da trama é marcada por uma cena que, durando cerca de 20 minutos, com certeza vai ser um dos melhores e mais bem dirigidos momentos do cinema em 2024. Nela, Ani e Ivan recebem a visita dos capangas dos pais dele – e é aí que “Anora” diz a que veio e revela os princípios ativos do seu humor: um equilíbrio dinâmico, no fio da navalha, entre comédia e tensão, e a subversão de expectativas. Porque os capangas não são o que você espera de brutamontes russos. Ani não é uma vítima e uma coitada indefesa. Ivan não é nem de longe um príncipe num cavalo branco. E a longa jornada noite adentro em que eles são jogados revela quem esses personagens são de verdade – especialmente se a protagonista ama apenas o dinheiro e as experiências que aquele relacionamento proporcionam, se o jovem russo está meramente se divertindo, ou se o casal realmente ama um ao outro.
No seu trabalho mais maduro como diretor, Baker constrói o tom delicado e arriscado do filme, combinando a abordagem semidocumental de sua câmera e de sua mise-en-scène com o caráter farsesco da trama. Assinando também a montagem do longa, o cineasta imprime um ritmo implacável e constante, encontrando o timing cômico certo para os bons diálogos e as várias tretas do roteiro – mas também permitindo que cada cena revele um pouco mais sobre os personagens.
Seu trabalho é completado pelas ótimas escolhas – e atuações – do elenco. A revelação Mikey Madison (do seriado “Better Things”) confere um fogo e uma irreverência a Ani, que esconde sua fragilidade e seus sentimentos sob uma armadura de combatividade e uma língua ferina, nunca abaixando a cabeça para os vários insultos que lhe são dirigidos e tornando impossível não torcer por ela. Eydelshteyn, com sua cara de adolescente sem noção e jeito de menino de 12 anos, é um achado dono de um carisma que ajuda o público a se afeiçoar por Ivan, mesmo diante das escolhas questionáveis do personagem. Mas o grande segredo de “Anora” é o ótimo Yura Borisov (do excelente “Compartimento Número 6”) e sua atuação quase silenciosa como Igor, um dos capangas russos, sobre quem quanto menos você souber, melhor.
Com cerca de 2h15, o filme pode parecer se estender um pouco demais, mas o epílogo após a solução da treta russa se justifica com aquela que talvez seja a sua cena mais bonita, envolvendo uma aliança. Porque existe, sim, um romance sendo construído no longa. Ele é quase imperceptível, mas fundamental: é com ele que Baker estabelece o contraste entre o que o cinema, comédias românticas e “Uma Linda Mulher” vendem como história de amor, e o que uma história de amor é na verdade. Mais um contraste entre sonho e realidade que o cineasta desenha com maestria.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.