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“Back to Black” falha em retratar a essência de Amy Winehouse

"Back to Black" (2024), de Sam Taylor-Johnson - Divulgação

Divulgação

Os dois trechos a seguir, um oposto do outro, fazem parte da canção “You Know I’m No Good”, de Amy Winehouse, segunda faixa do premiado álbum “Back to Black”, cujo título é o mesmo do filme sobre a cantora e compositora que acaba de entrar em cartaz nos cinemas. O primeiro é: “I told you, I was trouble. You know that I’m no good” (Eu te disse que eu era problema. Você sabe que eu não sou boa). Já o segundo diz: “I cried for you on the kitchen floor” (Eu chorei por você no chão da cozinha).

No primeiro verso, é possível enxergar uma Amy que admite não ser uma boa influência, ciente dos seus atos ruins e decidida a falar a verdade. Já na segunda frase, a artista mostra sua vulnerabilidade, confessando estar sofrendo pelo seu companheiro de maneira intensa. Ou seja, é possível notar duas personalidades distintas da cantora na mesma música, algo que acontece em diversas outras canções de Amy. Isso revela que existem, no mínimo, duas delas em uma só pessoa, e que essas personalidades distintas fazem parte do seu dia a dia. Se isso é tão notório nas letras das músicas de Amy, por que o roteiro de “Back to Black” optou em mostrar apenas o lado frágil, romântico incorrigível e sombrio da artista?

A produção dirigida por Sam Taylor – Johnson (“Cinquenta Tons de Cinza”) mostra como o romance da artista com Blake Fielder-Civil a inspirou a compor o tão aclamado disco. O longa apresenta a trajetória obscura de Amy, que além de se relacionar de forma intensa com Blake, também se envolveu excessivamente com álcool e drogas, problema que a levou à morte precoce, aos 27 anos de idade, em 2011.

"Back to Black" (2024), de Sam Taylor-Johnson - Divulgação
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Certamente, roteirizar a história de uma artista tão completa e complexa como a britânica não seria uma missão simples. Apesar de pouco tempo de carreira, a narrativa poderia seguir vários caminhos, mas acredito que o texto de Matt Greenhalgh não optou pela melhor via. O roteirista escolheu mostrar duros momentos da vida de Amy Winehouse, e esse não é problema, afinal, todos que conhecem o mínimo sobre ela sabem de seus abusos e intensidades com diversos tópicos. Porém, é mesmo necessário mostrar apenas este lado de um ícone tão importante para a cultura pop mundial?

De acordo com o texto de divulgação do filme, “’Back to Black’ foca na extraordinária genialidade, criatividade e honestidade de Amy que infundiu tudo o que ela fez”. Para a equipe, o longa “atravessa o espelho da celebridade para assistir a esta jornada por trás do espelho”, para ver o que ela viu, para sentir o que ela sentia. Ou seja, o intuito dos realizadores era mostrar mais detalhes da mulher emblemática e com personalidade marcante. No entanto, o resultado apresentado na tela só relata com profundidade os momentos difíceis da cantora e como ela era extremamente dependente emocionalmente de Blake (interpretado por Jack O’Connell), que se torna o centro das atenções do filme. Além da dor, o longa não consegue mostrar o que ela sentia.

O causador de sentimentos diversos na artista é interpretado como um galanteador interessante no início, um cara divertido. Porém, o carisma que ele entrega em suas primeiras aparições se perde no decorrer da história, e logo Blake se torna um cara comum, que tem seus vícios e apenas isso. Não há aprofundamento em sua narrativa, por isso é difícil construir algum desgosto verdadeiro por ele, a não ser por suas atitudes com a protagonista, que em alguns poucos momentos despertam indignação. Para se odiar de verdade um vilão, é preciso mais elementos, e estes não estão em “Back to Black”, o que é um erro no roteiro, já que o filme é sobre um álbum com grande parte das canções escritas por causa do relacionamento de Amy com Blake. O enredo não convence nem mesmo quando o assunto é o romance dos dois, deixando até mesmo a dúvida a respeito de como Amy foi se apaixonar por aquele homem.

"Back to Black" (2024), de Sam Taylor-Johnson - Divulgação
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Mas a mesma superficialiade afeta a personagem principal. O que vemos em tela sobre Amy Winehouse (vivida por Marisa Abela) é uma artista que já tem absoluta certeza sobre sua carreira e sabe o que quer alcançar ao se tornar uma cantora famosa. É possível acompanhar também a paixão dela por suas referências musicais, sempre com muita admiração por grandes nomes do jazz. Os seus figurinos que remetem à moda dos anos 80, com muita personalidade e jeans, são uma característica marcante da artista (e sua marca até os dias de hoje). E claro, Amy era apaixonada por Blake. Ponto. É só isso que o filme nos mostra sobre ela.

Nada sobre a vida da cantora é aprofundado, deixando várias perguntas sem respostas. Questões básicas, como: qual era a relação dela com a mãe (interpretada pela veterana Lesley Manville)? Qual era a relação dela com o pai e por que era ele quem cuidava da imagem da filha? Por que o patriarca ignorou os fatos e fingiu que ela não precisava de ajuda em relação às drogas no início da carreira? Qual foi o real motivo da troca de empresário? E eu poderia me estender ainda com questão como: quando e por que Amy começou a usar heroína? Por que ela aceitou tão passivamente quando Blake disse que não a queria mais, sem correr atrás de seu grande amor? A decisão em ser internada foi tomada de uma maneira tão fácil e lúcida? Quem a influenciou? E por que raios ela arrancou o dente da frente?

Quando Marisa Abela foi anunciada como o nome que interpretaria a artista, muitos fãs da cantora criticaram a escolha por ela não se parecer com Amy. E sim, a atriz e a cantora realmente não se parecem. Porém, esse é o menor dos problemas, já que o figurino e a maquiagem são bem aproveitados no filme e deixam a pouca semelhança entre as duas um pouco de lado. O problema maior é que a interpretação de Abela fica a desejar por a atriz levar à tela uma mulher sem presença e sem alma, o que é inadmissível de se pensar a respeito de Amy Winehouse. Sua parte forte, destemida e imponente (que inclusive influenciou uma geração de garotas) ficou para trás e o público só é apresentado a uma mulher ingênua e abalada psicológica e fisicamente por sua paixão por um bad boy. Tudo volta para Blake em algum momento e toda a personalidade da cantora parece ter sido construída baseada nessa relação infeliz. O que vemos é uma mulher sem conteúdo quando o assunto não é uma paixão avassaladora. E isso faz surgir um sentimento de estarmos vendo a história de amor de uma personagem qualquer.

"Back to Black" (2024), de Sam Taylor-Johnson - Divulgação
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O pai da artista britânica (interpretado por Eddie Marsan) aparece em vários momentos na história, porém, em nenhuma delas sua presença é considerada marcante. Sempre com falas rasas, o filme não mostra quem foi o pai Mitch Winehouse além de um homem que aparecia em alguns momentos, mas que nunca sequer confrontava a filha.

Cenas que envolvem mais pessoas são mal dirigidas, causando confusão visual e impedindo compreender o que está acontecendo ali e o que motivou o conflito em cena. Um exemplo disso é a primeira briga do casal Amy e Blake, onde a cantora machuca o rosto do companheiro sem um motivo plausível e fica por isso mesmo. Outras cenas parecem desconexas, dando a impressão de que havia mais história ali, mas que a edição cortou ou a direção preguiçosamente optou por não aprofundar.

Como se não bastasse, o filme de uma das artistas mais importantes dos últimos 20 anos também deixa a desejar no quesito música. Faltaram os shows, faltou Amy em cima do palco. O longa enriqueceria muito com uma apresentação de três minutos de Marisa Abela interpretando a artista no palco, mostrando vocal, presença e trejeitos marcantes da cantora. Faltou um momento “show do Queen”, como retratado em “Bohemian Rhapsody”,  ou algo mais parecido com a apresentação do Rei do Rock em “Elvis”. Faltou Amy cantando, e apenas cantando. Não brigando com a plateia ou encenando para seu marido ou seu pai… Faltou vê-la cativando o público com sua voz em uma apresentação que só mostrasse o quanto ela era uma estrela, e nada menos que isso.

Um dos poucos bons diálogos de “Back to Black” acontece quando Blake e Amy acordam juntos pela primeira vez. Ele diz que achava que a jovem era “rock’n’roll”, e a artista prontamente responde: “Eu sou jazz”. E isso é o que mais faltou ao longa. Jazz não é só sofrimento ou dor. Faltou jazz ao filme. Faltou elegância, felicidade intensa, diálogos elaborados, cenas fortes, personagens marcantes e interpretações memoráveis. Faltou voz. Faltou música cantada profundamente. Faltou Amy. Faltou Amy Winehouse. ■

filme back to black

Nota:

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BACK TO BLACK (2024, Reino Unido, EUA). Direção: Sam Taylor-Johnson; Roteiro: Matt Greenhalgh; Produção: Alison Owen, Debra Hayward, Nicky Kentish-Barnes; Fotografia: Polly Morgan; Montagem: Martin Walsh, Laurence Johnson; Música: Nick Cave, Warren Ellis; Com: Marisa Abela, Jack O’Connell, Eddie Marsan, Lesley Manville; Estúdio: Monumental Pictures, StudioCanal; Distribuição: Universal Pictures; Duração: 2h 2min.

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