Mia Wasikowska interpreta uma professora de nutrição, Miss Novak, que incentiva um grupo de alunos a regular a alimentação de forma absurda e perigosa, no novo filme de Jessica Hausner: “Clube Zero”. Numa proposta com a finalidade de causar desconforto, o filme transita entre elementos de gêneros de drama, suspense e, até mesmo, comédia, criando uma atmosfera de estranhamento ao fazer reflexões relacionadas a distúrbios alimentares, saúde mental, negacionismo e desinformações, com cenas fortes e impactantes.
O estranhamento proposital que “Clube Zero” provoca, atrelado a uma construção autoral, estética e visual, se dá através de direção de arte, cenários e figurinos com uma paleta de cores específica a partir dos uniformes escolares amarelos, atuações inexpressivas e comportamentos rígidos, ângulos e posicionamentos de câmera organizados em uma mise-en-scène que demonstra controle e a sensação de claustrofobia. Estas escolhas estéticas se atribuem a uma dinâmica de questionamento sobre o universo diegético do filme. Esta é uma representação absurda do mundo real? Ou uma representação realista de uma situação absurda?
Sob a orientação da enigmática professora, a Sra. Novak, este grupo de adolescentes é levado a extremos preocupantes, incentivados a participar de um experimento, “Comer Consciente”, que gradualmente avança ao ponto de não comerem absolutamente nada, formando assim o “Clube Zero”. A rigidez visual apontada dialoga com uma sinceridade desconcertante sobre os temas que o longa se propõe questionar e ampliar discussões, sem definir origens e causas desses problemas, mas sim entender como eles reverberam e repercutem pelo universo dos adolescentes em um contexto escolar. Pressões sociais e familiares, julgamentos e padrões de beleza inalcançáveis são questões levantadas ao longo do filme, mas a crítica mais explorada ao longo da narrativa é sobre a desinformação transmitida de forma irresponsável.
Ao pensar sobre a adolescência como um momento de construção da personalidade e da visão de mundo, observamos o comportamento destes jovens buscando entendimento e consciência, mas completamente saturados de informações superficiais, defendendo e reproduzindo um discurso problemático, com frases como “o que fazemos é importante”, como se o programa anti-alimentação fosse um ato revolucionário e salvador do planeta. Um ato que claramente os adoece fisicamente e mentalmente, reforçando pensamentos extremamente autodestrutíveis relacionados a distúrbios alimentares: “quanto mais devagar você comer, menos comida irá precisar”; “se eu não comer, eu não tenho que vomitar”. Ao acreditarem neste discurso, o grupo começa a fazer um julgamento em relação às pessoas que comem normalmente, e chegam no ponto de fingirem que estão comendo quando estão em público.
O longa também aponta questões sobre diferenças de classes sociais. Os adolescentes do Clube Zero, pertencentes a famílias ricas, estudam em uma escola de elite, cenário perfeito para que o negacionismo ganhe força, onde escolher o que comer (e não comer) é também um lugar de privilégio. Na ilusão dos benefícios de seus atos, eles tentam se justificar com o discurso de que “os pobres vão deixar de ter fome se todos comerem conscientemente”. Na verdade, mais adiante na narrativa, percebemos a incoerência deste pensamento em momentos em que eles acabam desperdiçando a comida ao fingirem que estão se alimentando. Inicialmente, há empatia por um dos personagens, Ben, que se recusa a participar do grupo, e eventualmente acaba sendo ameaçado e coagido, pelo julgamento, culpa, e humilhação, o que o leva a ter conflitos até mesmo com sua mãe.
Por meio de uma narrativa que confronta o limite entre o exagero e a realidade, o filme faz uma sátira direta a comportamentos de desvalorização da ciência. Parece absurda a ideia de que alguém realmente acredite na possibilidade de viver sem se alimentar, sob as regras do “Clube Zero”, mas logo identificamos infelizes traços de realidade quando nos deparamos com movimentos negacionistas. Por exemplo, por mais difícil que seja de acreditar, recentemente houve o caso de um homem que confessou que matou seu filho bebê ao realizar um experimento para comprovar que as pessoas são capazes de se alimentarem apenas da luz do Sol.
“Clube Zero” é literalmente um filme indigesto, mas importante, ao fazer uma acusação direta à desinformação e ao negacionismo, e trazer reflexões intensas e uma conscientização sobre distúrbios alimentares. Com um visual único e atuações precisas, o longa tem a sensibilidade de dar um final simbólico aos personagens que caminham para o único destino possível para quem cai na ilusão e no perigo de se envolver em extremismos alimentares gerados pela desinformação e desvalorização da ciência. ■
CLUBE ZERO (Club Zero, 2024, Reino Unido, Áustria, Alemanha). Direção: Jessica Hausner; Roteiro: Jessica Hausner, Géraldine Bajard; Produção: Philippe Bober, Bruno Wagner, Mike Goodrige, Johannes Schubert; Fotografia: Martin Gschlacht; Montagem: Karina Ressler; Música: Markus Binder; Com: Mia Wasikowska, Mathieu Demy, Elsa Zylberstein, Amir El-Masry, Sidse Babett Knudsen; Estúdio: BBC Film, Essential Films; Distribuição: Pandora Filmes; Duração: 1h 50min.