O início de “Emilia Perez” não aponta para um caminho exatamente promissor ou confiável. O filme parece tratar a questão da transição de gênero e sexualidade apenas como um procedimento cirúrgico, cosmético, de uma forma bastante simplista – o que não é bom sinal, especialmente num longa dirigido por um homem cis. Muito rapidamente, porém, o musical faz uma curva e vai na direção oposta. Ele entende que transicionar de um corpo nascido masculino para um feminino não se trata de algo meramente estético. Ser mulher é uma questão ética. É enxergar e abordar o mundo de outro ponto de vista, é ser enxergada e tratada diferente, é sentir as coisas de outro jeito – é ocupar um espaço diverso. É abandonar um projeto (político) de masculinidade.
Permitir que sua protagonista percorra todo esse processo de amadurecimento e transformação com complexidade, prazer e alegria é o que torna “Emilia Perez” um filme tão satisfatório. Tão empolgante e único em sua abordagem de um gênero de afinidade historicamente queer, mas que nunca abriu um espaço desse porte e orçamento para uma narrativa abertamente fora da cisgeneridade, num contexto declaradamente periférico, latino e chicano.
A trama tem início quando a protagonista, ainda no corpo do chefe do cartel Manita del Monte, contrata a advogada Rita (Zoe Saldaña) para tratar dos procedimentos e cuidar dos papéis que vão lhe permitir abandonar o mundo do crime e assumir definitivamente sua identidade como mulher. Isso dura cerca de 20 minutos de filme e, logo em seguida, o diretor francês Jacques Audiard (“O Profeta”, “Ferrugem e osso”) corta para quatro anos mais tarde. Já como Emilia Perez (Karla Sofia Gascón), a protagonista volta a recorrer à ajuda de Rita para trazer os dois filhos, exilados com a mãe Jessi (Selena Gomez) na Suíça, de volta para o México.
A partir daí, a estrutura do roteiro assume um corpo estranho – meio novela, meio denúncia documental, muito musical – que não deveria funcionar… mas, de alguma forma, funciona. Na sua loucura ousada, multigênero e ambiciosamente sociopolítica, o filme permite que Emilia realmente complete sua transição. Porque, escondendo sua verdadeira identidade dos filhos e da ex-esposa, a protagonista segue vivendo uma mentira, bancada pela fortuna acumulada com os crimes de Manita e do cartel. É só quando ela encarar e expiar todos esses pecados de sua antiga masculinidade que sua mulheridade realmente vem à tona e se complexifica.
Pode parecer meio sombrio ou inusitado, mas nos seus números musicais com direito à corpo de baile, coreografia e ritmos deliciosamente mexicanos, “Emilia Perez” é, na verdade, bastante divertido. Veterana de novelas, a atriz espanhola Karla Sofia Gascón abocanha com gosto uma personagem trans que a narrativa permite ser complexa, com sexualidade, desejo, incoerências, falhas, erros e capacidade de redenção. Saldaña, por sua vez, presa em filmes de ação genéricos em Hollywood, parece mais leve que nunca, à vontade e feliz atuando em espanhol. Sem tentar roubar os holofotes de Emilia, centro da história, ela é o grande destaque dos momentos musicais, cantando e dançando de forma impecável, e conferindo paixão e verdade a uma personagem cuja vida pessoal é o trabalho. Gomez, tão boa em “Only Murders in the Building”, é o ponto mais fraco do triângulo de mulheres do longa, com um espanhol duro, carregado de sotaque inglês e uma personagem um tanto chatinha.
Audiard, aventurando-se num dos gêneros mais difíceis do cinema, acerta a mão em fazer de “Emilia Perez” um longa autenticamente mexicano. O longa abraça as raízes e a cultura do país, sem medo de explorar a cafonice intrínseca das telenovelas, as locações populares e periféricas, os problemas sociais, os ritmos locais nas diferentes canções e o design de produção dos escritórios e casas que, nos mínimos detalhes, não tenta embelezar artificialmente o país.
Na última sequência, em especial, “Emilia Perez” mostra a estátua de uma Nossa Senhora usando um vestido que apareceu antes no filme, num gesto profundamente subversivo e importante. Se as músicas do roteiro não são exatamente perfeitas, e se o final pode parecer reforçar um clichê problemático de narrativas trans, é essa cena, esse gesto que afirma as ambições quase épicas de Audiard para sua protagonista. Porque o gênero musical é queer e as cultura tradicionais também são – e não é uma questão só estética. É ética também.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.