"Furiosa: Uma Saga Mad Max" (Furiosa: A Mad Max Saga, 2024), de George Miller - Warner Bros./Divulgação
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“Furiosa”: A mágica do cinema acontece novamente

Talvez uma das tarefas mais difíceis na arte do cinema seja criar filmes cujo desenvolvimento não se apoia no roteiro. Obras como as de Charles Chaplin, Federico Fellini, John Cassavetes, Eduardo Coutinho e Sofia Coppola, por sua própria natureza livre e fragmentada, costumam ganhar vida somente em frente às câmeras ou na sala de montagem. Não que estes filmes não demandem um planejamento e um cálculo rigorosos. Mas, por não seguirem exatamente uma linha narrativa de causas e consequências claras e se concentrarem muito mais em episódios que precisam compor uma unidade coerente, tais obras costumam ter o desafio de manter a atenção do público com cenas e sequências emocionalmente poderosas e esteticamente bem-trabalhadas. Imagine o quão difícil deve ter sido para Chantal Akerman desdobrar a tênue premissa de “Jeanne Dielman” (1975) e suas três horas, se valendo unicamente da performance de sua atriz principal, dos enquadramentos precisos e do ritmo lento da montagem para criar este que hoje é celebrado como o melhor filme da história.

Pois “Furiosa: Uma Saga Mad Max”, a mais nova incursão de George Miller no universo iniciado por ele em 1979, consegue exatamente este feito, de oferecer ao espectador uma experiência cinematográfica na qual o desenrolar macronarrativo dos acontecimentos fica em segundo plano. Trata-se de uma proposta, antes de tudo, sensorial. Tal qual o último exemplar da franquia, “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015), a prequel que agora chega aos cinemas poderia ser enquadrada no que o britânico Alfred Hitchcock chamava de “cinema puro”, ou seja, essencialmente imagético, no qual a construção visual é o principal recurso narrativo da trama, obedecendo fielmente à máxima de que “forma é conteúdo”. “Furiosa” também recupera algo que sempre esteve em voga na sétima arte, em maior ou menor grau: o cinema como espetáculo. Cenas grandiosas, com muitos efeitos visuais e figurantes, criando uma atmosfera épica que provoca no público a sensação de pertencer a algo único. O principal resultado desta vertente grandiloquente do cinema é levar o espectador a se maravilhar, imaginando como aquilo parece tão real. De que modo James Cameron e sua equipe em “Titanic” (1997) foram capazes de recriar com tanta fidelidade a tragédia do transatlântico? E como “Jurassic Park – O Parque dos Dinossauros” (1993), de Steven Spielberg, consegue transportar quem está assistindo para um cenário de milhões de anos atrás?

Tudo isso nos conduz à pergunta: qual o segredo de George Miller para conseguir construir um épico de mais de duas horas centrado primordialmente em elaboradas sequências de ação, sem com que isso torne a obra vazia ou simplória? Como as intrincadas cenas de perseguições, lutas em cima de veículos em movimento, explosões e batidas saíram da imaginação do cineasta e podem ser vistas por todos, tal como se tivessem acontecido de fato? Certamente o sucesso da produção se deve tanto à própria direção de Miller quanto à protagonista de Anya Taylor-Joy, sendo merecido também o destaque para a montagem – desta vez novamente a cargo de Margaret Sixel, vencedora do Oscar de Melhor Montagem por “Estrada da Fúria”, e de Eliot Knapman, segundo assistente no time de edição do filme de 2015.



"Furiosa: Uma Saga Mad Max" (Furiosa: A Mad Max Saga, 2024), de George Miller - Warner Bros./Divulgação
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Na nova história da saga, somos levados ao passado de Furiosa (Alyla Browne na versão adolescente, Anya Taylor-Joy como a jovem adulta protagonista). Após ser sequestrada do Vale Verde de Muitas Mães – terra de abundantes recursos naturais em meio à penúria – por membros do grupo do tirano Dementus (Chris Hemsworth), a jovem acaba caindo nos domínios do poderoso Immortan Joe (Lachy Hulme). Presa em meio à disputa por controle de escassos recursos em um mundo pós-apocalíptico, Furiosa precisa se inspirar na força das mulheres de sua terra natal para tentar trilhar o caminho de volta para casa, com a inesperada companhia (até certo ponto) de Praetorian Jack (Tom Burke), principal comandante das forças militares que servem a Immortan Joe.

Dividido em cinco capítulos (“O Polo da Inacessibilidade”, “Lições do Deserto”, “A Clandestina”, “Indo para casa” e “Além da Vingança”), o longa-metragem demonstra a habilidade de George Miller para introduzir seus universos e narrar sem palavras a dinâmica dos acontecimentos. Especialmente trabalhando com uma trama que se passa toda no deserto, a direção de Miller, aliada à cinematografia de Simon Duggan, consegue usar de diversas formas a areia para intensificar a dramaticidade da narrativa. Seja pela paleta de cores carregada de amarelo, bege e marrom – fundamental para a atmosfera “quente” que permeia o filme – ou pelos planos abertos que mostram a imensidão do deserto coberta pela areia esvoaçante, conferindo maior escala à ação. Há uma sequência em especial, ainda nos primeiros momentos do filme, quando Furiosa está voltando para saber o que houve com sua mãe – capturada por Dementus –, na qual a paisagem enevoada do deserto é atravessada por pássaros e lembra uma pintura ou um filme expressionista. Porém, a maior referência visual para este novo longa da franquia parece ser o western, com seus grandes planos e paisagens em torno do Monument Valley.

O trabalho visual é igualmente impressionante quando o assunto é a escolha de planos e a movimentação de câmera. Miller e seu diretor de fotografia se valem bastante de movimentos circulares ou semicirculares em torno dos personagens, de modo a tornar clara a correlação de forças de cada cena. Outro expediente bastante usado são elaboradas coreografias que começam no horizonte e nos levam direta e rapidamente até algum dos peculiares veículos do filme ou, mais importante ainda, até algum rosto castigado pelo fim do mundo. O movimento inverso também é bastante recorrente, com a câmera saindo de close-ups ou planos mais fechados para a amplitude do quadro geral, de modo a situar o espectador no entorno desolado ou revelar os acontecimentos em sua completa dimensão.

"Furiosa: Uma Saga Mad Max" (Furiosa: A Mad Max Saga, 2024), de George Miller - Warner Bros./Divulgação
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Rivalizando com a imponência do deserto, apenas o rosto de Anya Taylor-Joy, “o mais sombrio dos anjos”, como a certa altura diz um personagem. Além de ser uma escolha acertadíssima de casting por sua semelhança física com Charlize Theron, intérprete de Furiosa em “Estrada da Fúria”, Taylor-Joy imprime força e resiliência admiráveis na personagens. Seus olhos, que vemos refletir o assassinato de sua mãe no início do filme, tornam-se ao longo da trama o veículo para os mais diversos estágios da personagem. Vemos através deles sua altivez quando não desvia a atenção dos atos de violência promovidos por Dementus ou quando o contradiz perante Immortan Joe, seu temor de ser descoberta quando está disfarçada ou escondida, e, finalmente, seu desejo obstinado de vingança quando confronta o homem que matou brutalmente sua mãe. É através de seu olhar e de como seu corpo incorpora a imponência, a agilidade e a firmeza de Furiosa que Anya Taylor-Joy torna sua interpretação crível e coerente com aquilo que havíamos acompanhado até então na franquia.

O elevado nível de qualidade de “Furiosa” se deve também à protagonista por trás das câmeras, a montadora Margaret Sixel, desta vez acompanhada por Eliot Knapman. Digo “protagonista” porque a montagem é um elemento-chave para o bom funcionamento deste filme. Precisamos saber exatamente para onde os personagens estão indo, o quê e quando cada um vê ou é visto, a ordem e conexão das ações e a configuração dos espaços e grupos, sempre em movimento acelerado. Para além deste desafio, de tornar uma narrativa tão frenética compreensível para o público, é dos montadores a tarefa de criar o ritmo do filme. É necessário que o público sinta a urgência da mãe de Furiosa ao buscar pela filha sequestrada, ou os desdobramentos cumulativos da luta da protagonista e Praetorian Jack para escaparem da investida de Dementus. Tudo isso é feito de forma exemplar no filme, com uma profusão de cortes rápidos em meio às ações, mas também com instantes em que a montagem segura algum plano fixo para distender a expectativa do público, valorizando o tempo orgânico, do que ainda resta das pessoas, em contraposição aos veículos que correm ininterruptamente pelo deserto. Prova disso é a delicada transição temporal que mostra o passar dos anos após Furiosa ser passada a Immortan Joe: a protagonista corta seus cabelos para se passar por um rapaz e escapar das investidas de um dos filhos do tirano, mas ele acaba percebendo, e Furiosa precisa se esconder; ela consegue, mas seus cabelos vão parar em um galho de árvore de um paredão, e a estrutura é mostrada crescendo em stop-motion, o que pode ser visto como uma metáfora para o próprio crescimento da personagem principal em meio às adversidades e jogos de poder da Cidadela.

No entanto, nem tudo funciona perfeitamente no novo filme de George Miller. O principal problema talvez seja o fraco trabalho do roteiro (escrito por Miller e Nico Lathouris, seu parceiro do filme anterior) no que diz respeito às relações interpessoais desenvolvidas pelos personagens. Pouco ou quase nada é mostrado da convivência de Furiosa com sua mãe ou Praetorian Jack, o que diminui consideravelmente o potencial efeito de choque da morte de ambos os personagens. Por tabela, a busca de Furiosa por vingança contra Dementus acaba se transformando em uma trama menos interessante por seu objetivo do que por sua execução. Muito disso se deve ainda à interpretação de Chris Hemsworth, que não chega a estar mal no filme, mas constrói um personagem cujo aspecto patético sobrepõe o lado ameaçador, dada a forma como se move e entrega as falas, sempre em uma combinação despretensiosa e jocosa.

"Furiosa: Uma Saga Mad Max" (Furiosa: A Mad Max Saga, 2024), de George Miller - Warner Bros./Divulgação
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Mas o filme ainda consegue, com suas grandes sequências de ação a bordo do Máquina de Guerra e seu final, um longo acerto de contas shakespeariano encerrado com ecos poéticos da mitologia greco-romana, criar uma experiência tão grandiosa quando “Mad Max: Estrada da Fúria”. Melhor: “Furiosa” se sai muito bem como um filme isolado. Trata-se, afinal, de um espetáculo visual que não deve nada aos melhores épicos do cinema, capaz de impressionar pela escala de sua produção e pela habilidade de trazer cenas e sequências inteiras sem diálogo, apenas com o que o cinema tem de mais específico. Após 45 anos de lançamento do primeiro filme e de quase uma década do último longa, “Furiosa“ prova que, quem diria, o 5º filme de uma franquia pode ser excelente. Se esta não é mais uma das tantas mágicas cinematográficas que vemos dentro e fora desta franquia, desconheço o que possa ser. ■

crítica filme guerra civil

Nota:

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FURIOSA: UMA SAGA MAD MAX (Furiosa: A Mad Max Saga, 2024, EUA, Austrália). Direção: George Miller; Roteiro: George Miller, Nico Lathouris; Produção: George Miller, Doug Mitchell; Fotografia: Simon Duggan; Montagem: Margaret Sixel, Eliot Knapman; Música: Tom Holkenborg; Com: Anya Taylor-Joy, Chris Hemsworth, Tom Burke, Alyla Browne; Estúdio: Kennedy Miller Mitchell, Domain Entertainment, Village Roadshow Pictures; Distribuição: Warner Bros.; Duração: 2h 28min.

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