"Grand Tour" (2024), de Miguel Gomes - Uma Pedra no Sapato/Divulgação
Uma Pedra no Sapato/Divulgação

“Grand Tour”: Um gesto pela metade | Cannes 2024

Para quem entrar no cinema desavisado, pode parecer que “Grand Tour”, novo longa do português Miguel Gomes (“Os Diários de Otsoga”, “As Mil e Uma Noites”, “Aquele Querido Mês de Agosto”), é uma adaptação literária. Na presença recorrente da narração em off, que descreve motivações dos personagens e eventos da trama que nem sempre estão na tela com um texto cuidadoso e detalhista, a história remete a um daqueles romances históricos de trocentas páginas que inundam livrarias mundo afora.

Mas ele não é. Trata-se de um roteiro original escrito a dez mãos por Gomes, sua esposa e parceira criativa Maureen Fazendeiro, além de Telmo Churro, Mariana Ricardo e Babu Targino. Com a ajuda deles, o cineasta luso revisita o imaginário colonial de “Tabu”, inclusive com a mesma fotografia em preto e branco, desta vez colocando inusitadamente atores portugueses interpretando personagens ingleses numa espécie de road movie pelo sudeste e leste asiático no início do século XX.

O gesto parece querer evidenciar o papel e o protagonismo lusitano nas violências do colonialismo, mas acaba ficando pela metade. “Grand Tour” é bem realizado, contudo é mais um filme em que personagens brancos ocupam o centro da tela e da narrativa, enquanto os nativos dos vários países que lhe servem de locação permanecem às margens do quadro sem muita voz ou vida própria.



"Grand Tour" (2024), de Miguel Gomes - Uma Pedra no Sapato/Divulgação
Uma Pedra no Sapato/Divulgação

A trama segue os desencontros de um casal inglês em 1918. Edward (Gonçalo Waddington, de “As Mil e uma noites”) é um burocrata do consulado inglês na Birmânia, prestes a ser visitado pela noiva, Molly (Crista Alfaiate, de “Os Diários de Otsoga”), que ele não vê há sete anos. Por motivos que nunca ficam bem claros, talvez ambivalente sobre o casamento iminente, ele foge do encontro, iniciando a grand tour do título, passando por países como Tailândia, Vietnã, Manila, Japão e China. A noiva, que não aceita a recusa de seu prometido, parte no seu encalço Ásia adentro.

Gomes filma essa jornada em duas partes. Na primeira hora, ele segue a fuga de Edward, narrada em off e encenada em alguns esparsos momentos de mise-en-scène mais clássica e ficcional. Na maior parte do tempo, vemos imagens documentais contemporâneas dos países por onde ele passa, mais ou menos relacionadas com o texto lido. Já na segunda, o longa acompanha Molly tentando seguir o rastro do noivo, desta vez com mais cenas de uma dramaturgia tradicional – mas alguns registros documentais também.

Esse gesto sui generis do cineasta, especialmente na primeira metade, busca direcionar o olhar da câmera, e do/a espectador/a, para os países visitados pelos dois protagonistas e seus habitantes. No entanto, a história que ouvimos é a de Edward e Molly, e as pessoas retratadas não têm voz ou função, a não ser ilustrar a rotina local. Uma escolha interessante, porém, é a recorrência do registro de teatros de bonecos, fantoches e outros gêneros narrativos desses locais. Com eles, o diretor parece querer chamar a atenção para a ideia de narrativa e como ela é apropriada e manifestada em culturas diferentes – algo ressaltado pelo fato de que o idioma da locução em off muda de acordo com a língua do país onde os protagonistas se encontram.

"Grand Tour" (2024), de Miguel Gomes - Uma Pedra no Sapato/Divulgação
Uma Pedra no Sapato/Divulgação

Já na metade final, na história de Molly, “Grand Tour” assume uma encenação bem mais clássica. Crista Alfaiate tenta imprimir algum humor e um lampejo de nonsense e de agência à obsessão um tanto inexplicável da personagem. E a excelente edição de som de Vasco Pimentel, Li Kelan e Miguel Martins, associada ao bom design de produção dos brasileiros Thales Junqueira (“Bacurau”) e Marcos Pedroso (“Que Horas Ela Volta?”), criam na tela os ambientes exóticos, mansões, mosteiros, barcos e florestas por quais o casal passa.

À medida que essa “trama” avança, porém, o desconforto com a violência e o descaso com que Edward e Molly tratam aqueles lugares e seus habitantes vai aumentando. O que Gomes quer dizer com isso é bastante óbvio e claro, mas seu comentário continua focalizando protagonistas e histórias brancos/caucasianos, e deixando os demais à margem. Além do casal, a única personagem mais ou menos desenvolvida é a vietnamita Ngoc (Lang Khê Tran), mas seu papel na história é simplesmente ser incondicional e imprudentemente devotada a Molly.

Com isso, o resultado do gesto de Gomes e seu filme parece incompleto ou pouco claro – a exemplo do porquê de encenar a parte de Edward de forma mais documental, e a de Molly de modo mais ficcional. Uma suposição seria que a primeira poderia estar mais relacionada à sensibilidade estética de Miguel Gomes, e a segunda à de sua parceira e roteirista Maureen Fazendeiro – mas isso é pura especulação. Como está, “Grand Tour” é uma espécie de irmão estético e espiritual do aclamado “Tabu”, só que sem a mesma potência e lucidez política.

Nota:

"Grand Tour" (2024), de Miguel Gomes - Uma Pedra no Sapato/Divulgação
Uma Pedra no Sapato/Divulgação
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.