“L’Amour ouf” (2024), de Gilles Lellouche - Studio Canal/Divulgação
Studio Canal/Divulgação

“L’Amour ouf”: A cota francesa | Cannes 2024

Lembra quando eu disse que Cannes é bairrista? Pois então: isso significa que todo ano entram ao menos umas três ou quatro produções francesas na competitiva oficial, e algumas delas são absolutamente injustificáveis e vergonhosas – mero quid pro quo industrial e jogo de marketing para filmes locais com elencos estrelados que rendem um belo tapete vermelho.

O troféu vergonha alheia da cota francesa deste ano vai para “L’Amour ouf” (ou “O Amor louco”). O longa é um daqueles filmes genéricos que estreia toda sexta na Netflix – sua coprodutora – e que você vê porque não tem nada melhor pra fazer, sem prestar muita atenção. Reunindo um amontoado de clichês já vistos melhor executados em outras produções, o misto de policial e romance do cineasta Gilles Lellouche já seria difícil de justificar como uma sessão hors concours, mas na competitiva oficial é um verdadeiro constrangimento para o festival.

A trama acompanha o romance entre o bad boy Clotaire e a boa mocinha Jackie. O filme de intermináveis 2h45 começa desde a infância deles nos anos 1970, passa pela adolescência na década de 1980 – quando eles são interpretados, respectivamente, por Malik Frikah e Mallory Wanecque – e chega a meados dos 1990, nos rostos dos astros franceses François Civil e Adèle Exarchopoulos (que só aparecem com mais de 1h de projeção). A história é movida pelas péssimas decisões de Clotaire, que abandona a escola, envolve-se com uma gangue da pesada, acaba indo parar na cadeia e, quando sai dez anos depois, vê sua amada casada com o coxinha Jeffrey (Vincent Lacoste).



O principal problema de “L’Amour ouf” é que Clotaire e Jackie são protagonistas rasos e absolutamente desinteressantes. Ele é daqueles personagens incapazes de ou não fazer uma escolha errada, ou permanecer passivo e aceitar as merdas que o destino lhe apronta. Já ela é uma mocinha sem sal que o longa nunca desenvolve muito para além da sua atração por ele e que Exarchopoulos tenta elevar com seu talento e suas conhecidas lágrimas – e quando nem o close de Adèle Exarchopoulos chorando eleva seu filme, é um mau sinal. Os dois amantes são aprisionados pelas decisões óbvias do roteiro que, ao contrário do ótimo “Anora”, nunca tenta subverter as expectativas de sua premissa batida – sucumbindo a elas de forma acrítica.

Lellouche, por sua vez, tenta compensar isso com floreios de realização, em especial movimentos de câmera e zooms que remetem aos thrillers policiais dos anos 1970. Sua tentativa de encenar algumas sequências de forma quase coreográfica, combinando esses movimentos com a trilha e a performance do elenco entrega claramente a maior referência do filme: o grande Martin Scorsese. O resultado, porém, com a falta de inspiração e originalidade da história e escolhas musicais que nunca dizem muito da narrativa, parecendo apenas uma coletânea de greatest hits da época, acaba apenas uma imitação barata, com esses arroubos de estilo tentando tornar cool e divertido algo que claramente não é.

Um exemplo claro disso são algumas sequências musicais que vão do nada para lugar nenhum, como se um videoclipe interrompesse repentinamente o longa sem muita justificativa. Contudo, o maior sintoma da insegurança do cineasta na sua história, que ele busca elevar de alguma maneira, é um dos truques mais baratos e indefensáveis do cinema: a tentativa de enganar o/a espectador/a com uma cena falsa – induzindo-o/a a achar que algo aconteceu para, depois, mostrar que aquilo não era verdade.

“L’Amour ouf” (2024), de Gilles Lellouche - Studio Canal/Divulgação
Studio Canal/Divulgação

Com todos esses problemas, “L’Amour ouf” poderia ser um longa mediano, fraco, mas passável, se não fosse pelas quase 3h de projeção. Com o passar do tempo, o filme vai ficando pior, mais cansativo, óbvio e arrastado. Nada na produção justifica essa duração, com Lellouche se estendo demais na adolescência para depois resolver a trama adulta de forma corrida e pouco verossímil – especialmente no que diz respeito à história de Clotaire e seus crimes, com alguns assassinatos e montagens que não fazem muito sentido. Some a isso um personagem negro usado como alívio cômico com piadas ruins e descartado de forma quase racista, e uma metáfora baranga do romance central no eclipse solar que os personagens acompanham duas vezes, e “L’Amour ouf” se revela como um pastiche de gêneros que ele trivializa e diminui com seu arremedo mal feito – o mesmo que sua presença faz com a competitiva oficial de Cannes.

Nota:

Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.