Lembra quando eu disse que Cannes é bairrista? Pois então: isso significa que todo ano entram ao menos umas três ou quatro produções francesas na competitiva oficial, e algumas delas são absolutamente injustificáveis e vergonhosas – mero quid pro quo industrial e jogo de marketing para filmes locais com elencos estrelados que rendem um belo tapete vermelho.
O troféu vergonha alheia da cota francesa deste ano vai para “L’Amour ouf” (ou “O Amor louco”). O longa é um daqueles filmes genéricos que estreia toda sexta na Netflix – sua coprodutora – e que você vê porque não tem nada melhor pra fazer, sem prestar muita atenção. Reunindo um amontoado de clichês já vistos melhor executados em outras produções, o misto de policial e romance do cineasta Gilles Lellouche já seria difícil de justificar como uma sessão hors concours, mas na competitiva oficial é um verdadeiro constrangimento para o festival.
A trama acompanha o romance entre o bad boy Clotaire e a boa mocinha Jackie. O filme de intermináveis 2h45 começa desde a infância deles nos anos 1970, passa pela adolescência na década de 1980 – quando eles são interpretados, respectivamente, por Malik Frikah e Mallory Wanecque – e chega a meados dos 1990, nos rostos dos astros franceses François Civil e Adèle Exarchopoulos (que só aparecem com mais de 1h de projeção). A história é movida pelas péssimas decisões de Clotaire, que abandona a escola, envolve-se com uma gangue da pesada, acaba indo parar na cadeia e, quando sai dez anos depois, vê sua amada casada com o coxinha Jeffrey (Vincent Lacoste).
O principal problema de “L’Amour ouf” é que Clotaire e Jackie são protagonistas rasos e absolutamente desinteressantes. Ele é daqueles personagens incapazes de ou não fazer uma escolha errada, ou permanecer passivo e aceitar as merdas que o destino lhe apronta. Já ela é uma mocinha sem sal que o longa nunca desenvolve muito para além da sua atração por ele e que Exarchopoulos tenta elevar com seu talento e suas conhecidas lágrimas – e quando nem o close de Adèle Exarchopoulos chorando eleva seu filme, é um mau sinal. Os dois amantes são aprisionados pelas decisões óbvias do roteiro que, ao contrário do ótimo “Anora”, nunca tenta subverter as expectativas de sua premissa batida – sucumbindo a elas de forma acrítica.
Lellouche, por sua vez, tenta compensar isso com floreios de realização, em especial movimentos de câmera e zooms que remetem aos thrillers policiais dos anos 1970. Sua tentativa de encenar algumas sequências de forma quase coreográfica, combinando esses movimentos com a trilha e a performance do elenco entrega claramente a maior referência do filme: o grande Martin Scorsese. O resultado, porém, com a falta de inspiração e originalidade da história e escolhas musicais que nunca dizem muito da narrativa, parecendo apenas uma coletânea de greatest hits da época, acaba apenas uma imitação barata, com esses arroubos de estilo tentando tornar cool e divertido algo que claramente não é.
Um exemplo claro disso são algumas sequências musicais que vão do nada para lugar nenhum, como se um videoclipe interrompesse repentinamente o longa sem muita justificativa. Contudo, o maior sintoma da insegurança do cineasta na sua história, que ele busca elevar de alguma maneira, é um dos truques mais baratos e indefensáveis do cinema: a tentativa de enganar o/a espectador/a com uma cena falsa – induzindo-o/a a achar que algo aconteceu para, depois, mostrar que aquilo não era verdade.
Com todos esses problemas, “L’Amour ouf” poderia ser um longa mediano, fraco, mas passável, se não fosse pelas quase 3h de projeção. Com o passar do tempo, o filme vai ficando pior, mais cansativo, óbvio e arrastado. Nada na produção justifica essa duração, com Lellouche se estendo demais na adolescência para depois resolver a trama adulta de forma corrida e pouco verossímil – especialmente no que diz respeito à história de Clotaire e seus crimes, com alguns assassinatos e montagens que não fazem muito sentido. Some a isso um personagem negro usado como alívio cômico com piadas ruins e descartado de forma quase racista, e uma metáfora baranga do romance central no eclipse solar que os personagens acompanham duas vezes, e “L’Amour ouf” se revela como um pastiche de gêneros que ele trivializa e diminui com seu arremedo mal feito – o mesmo que sua presença faz com a competitiva oficial de Cannes.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.