Eduard Limonov foi uma espécie de escritor beatnik russo, mas não pode ser exatamente definido como um ícone da contracultura – porque ele não era contra a cultura soviética e sempre afirmou que não era um dissidente do país, apesar de ter vivido fora dele nas décadas de 1970 e 1980, no auge do regime socialista. Seus livros, na verdade, acabaram se tornando uma versão protocomunista de Chuck Palahniuk ou Bret Easton Ellis, autores brancos cujo material pretensamente provocativo virou manual de instruções para incels. E nascido na Rússia, mas criado na Ucrânia, ele foi – antes de morrer em 2020 – um dos principais líderes e expoentes dos skinheads da extrema direita ucraniana.
Em suma, Limonov foi uma figura no mínimo controversa e um tanto difícil de sintetizar. E é isso que o diretor russo Kirill Serebrennikov (“A Esposa de Tchaikovsky”) tenta fazer em “Limonov: The Ballad”, exibido na competitiva do 77º Festival de Cannes. A cinebiografia busca retratar as incoerências e as diversas facetas de seu protagonista, mas nesse esforço de capturar a complexidade do escritor, parece esquecer de desenvolver qualquer outro personagem ou aspecto da história, resultando num longa irregular elevado por uma ótima performance do ator Ben Whishaw.
O filme acompanha Limonov (Whishaw) desde a juventude nos anos 1970 na ex-URSS, quando ele dividia-se entre suas aspirações a poeta e o trabalho como operário e costureiro, passa por seu exílio em Nova York com a namorada e musa Elena (Viktoria Miroshnichenko, de “Uma Mulher Alta”), depois Paris e, finalmente, o retorno à Rússia em 1989 e a subsequente carreira política, que chegou a leva-lo à prisão. Para distinguir cada uma dessas “fases”, o cineasta manipula a fotografia do longa. O início em p&b e janela 1:33 aprisiona o protagonista na pequena cidade da Carcóvia, onde vivia, com a cor chegando em seguida e, finalmente, a expansão para a janela 1:66 no exílio.
O estilo espetaculoso característico de Serebrennikov ainda se manifesta na utilização de imagens de arquivo da Nova York dos anos 1970, pelas quais Limonov caminha por meio do uso de um chroma key que nem sempre funciona e acaba tirando o/a espectador do filme em alguns momentos. E também nos seus conhecidos planos-sequência que buscam chamar a atenção e evidenciar a encenação, com um deles fazendo o protagonista correr por uma espécie de instalação artística (que se revela, no final, um estúdio), na qual uma série de telas mostram os principais acontecimentos históricos que permitem ao longa saltar de 1977 para o fim da década de 1980.
Apesar de visual e tecnicamente bem realizada, essa tentativa de criar um diálogo entre a jornada de Limonov e a história política do período parece forçada – como se o diretor inserisse uma série de verbetes da Wikipedia no meio do filme. Isso porque nada além do protagonista é desenvolvido o bastante no longa – e tudo externo a esse estudo de personagem dele parece raso e superficial. Elena é só um corpo que o escritor deseja – de forma um tanto tóxica, possessiva e violenta – que nunca ganha espaço ou vida interior suficiente para que o/a espectador/a realmente a conheça. Essa ausência de desenvolvimento dos outros personagens é tamanha que, num outro longo plano-sequência, iniciado em uma lavanderia e depois pela rua, Limonov conversa com um homem, que parece um amigo – e é impossível saber quem ele é.
Com isso, os floreios visuais do cineasta tentam suprir essas deficiências narrativas – e o incômodo das cenas na Rússia e na França faladas em inglês. Mesmo eles, porém, parecem sabotados por uma certa insegurança quanto à clareza da história. Um dos aspectos mais originais e interessantes criados por Serebrennikov é marcar as passagens de tempo inserindo o ano respectivo de forma diegética em algum elemento do cenário – só que depois a data aparece num letreiro tradicional, como se o filme não confiasse que o público fosse capaz de perceber a inserção original. Essa insegurança também se manifesta na narração em off e na onipresente trilha musical de Massimo Pupillo para tentar dar algum ritmo e cadência às longas 2h20 de projeção, mas cuja insistente repetição da mesma melodia acaba denotando o caráter repetitivo e cansativo do filme.
Essa repetição fica mais evidente no período que Limonov passa em Nova York e que compõe boa parte do longa. Serebrennikov gasta um bom tempo com anos em que pouca coisa, ou nada, acontece, numa série de tentativas frustradas do escritor de publicar seu primeiro livro – o que dá uma sensação arrastada à produção – e opta por não mostrar exatamente o momento em que ele consegue seu objetivo e atinge o sucesso. É uma elipse um tanto estranha, mas que talvez ressalte um aspecto positivo de como “Limonov” nunca trata seu protagonista como um herói simpático ou agradável por quem o público deve torcer, e sim como alguém difícil, desagradável e com alguns valores, no mínimo, questionáveis. Com isso, é a excelente performance de Whishaw – com um sotaque russo impecável – que confere alguma empatia e humanidade ao personagem, tornando-se facilmente a melhor coisa do filme e contendo toda a complexidade e originalidade que falta ao resto da produção.