"Marcello Mio" (2024), de Christophe Honoré - Bibi Film/Divulgação
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“Marcello Mio”: Tudo sobre meu pai | Cannes 2024

As relações complexas e disfuncionais entre pais e filhos/as têm sido um dos temas mais recorrentes na 77ª edição do Festival de Cannes. Diferente de “Diamant Brut”, “Bird”, “A Três Quilômetros do Fim do Mundo” e outros, porém, o franco-italiano “Marcello Mio” focaliza uma relação que parece ter sido bastante funcional – mas nem por isso menos delicada. O que acontece quando uma pessoa é seu pai, mas é também um dos nomes mais famosos do mundo? E quando, mesmo depois de morto, tudo que alguém consegue ver ao olhar seu rosto são os traços e expressões idênticos que você herdou dele?

São essas questões que a atriz Chiara Mastroianni confronta no longa dirigido por Christophe Honoré. Filha de Marcello Mastroianni – com ninguém menos que Catherine Deneuve –, ela usa o filme para, de certa maneira, reclamar o icônico ator como seu pai. E para mostrar, por meio de sua performance, que o que as pessoas lembram quando veem o rosto dela é o astro, uma persona construída e atuada por Marcello. No entanto, o que Chiara lembra, quando mencionam o nome dele, é uma memória afetiva doce, mas também uma falta dolorida e incurável. Se a descrição pode parecer uma sessão de terapia projetada na tela, é mais ou menos isso que a produção é, misturada com uma espécie de episódio especial da deliciosa série “Dix pour cent” dedicado à família Deneuve-Mastroianni.

Isso porque o elenco é composto quase exclusivamente de veteranos, astros e estrelas do cinema francês interpretando versões de si mesmos. Na trama, Chiara, depois de uma série de trabalhos em que seus diretores insistem em explorar a presença de Marcello evocada por seu rosto, resolve travestir-se como o pai e passar a viver a vida como ele. A decisão inusitada irrita sua diretora, Nicole Garcia, mas é apoiada por seu parceiro de cena, Fabrice Luchini. A mãe, La Deneuve, e o ex, Benjamin Biolay, tentam dar espaço para que a filha lide com a falta que sente do pai. O que não acontece com o ator Melvil Poupaud, que namorou Chiara na adolescência, quando Mastroianni faleceu, e acha a performance da protagonista desrespeitosa e um tanto insana.



"Marcello Mio" (2024), de Christophe Honoré - Bibi Film/Divulgação
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Como fica bem claro pelos nomes citados acima, “Marcello Mio” é uma espiadela nos bastidores do cinema europeu dos últimos 100 anos – e quem tem interesse por, ou mesmo conhece, as histórias e as relações entre esses diversos nomes vai se deliciar com o filme. Mesmo quem não tem muita familiaridade com o universo, no entanto, vai se divertir com o elenco brincando com versões de si mesmos e revelando fofocas sobre quem pegou quem (e todo mundo pegou todo mundo). Leve, engraçado e carregado de um sentimento universal e genuíno, o longa tem tudo para ser um hit no Festival Varilux ou na Festa do Cinema Italiano, onde quer que seja exibido.

Honoré filma essa farsa com uma luz forte e uma fotografia estourada, ressaltando o caráter onírico, de sonho acordado, da trama. E segue a protagonista pelas ruas e cantos mais inusitados de Paris, referenciando vários longas estrelados por Marcello, especialmente seus “filmes de flanneur”, como “La Dolce Vita” e “Fellini 8 ½”, com o qual compartilha, claro, o retrato metalinguístico dos bastidores do cinema – uma cena em que a atriz, vestida de Marcello, foge correndo de um programa de TV italiano, sendo perseguida por coxias, corredores e camarins parece especialmente inspirada pelo clássico.

Mesmo com esse tom farsesco, quem carrega “Marcello Mio” é mesmo a performance de Chiara, sustentando a premissa bizarra do longa com uma reprodução exata dos maneirismos do pai, mas também com uma melancolia e uma dor presente em todas as cenas. Os momentos mais bonitos do filme são as sequências em que ela revisita alguma memória de infância, seja uma recordação musical deitada com a mãe no chão do apartamento onde viveu com os pais na infância; ou um jantar claramente traumático que ela e Poupaud tiveram com um explosivo Mastroianni.

"Marcello Mio" (2024), de Christophe Honoré - Bibi Film/Divulgação
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A comédia serve ainda para quem não cansa de ver La Deneuve sendo La Deneuve, hipnotizando o olhar e comandando cada cena em que aparece, mesmo interpretando a si mesma – seja fumando, cantando ou… jogando vôlei. “Marcello Mio” talvez se estique um pouco além da conta, dada a leveza de seu tom farsesco, mas nunca entedia nem se leva a sério demais – a produção só está na competitiva oficial de Cannes por revisitar alguns episódios biográficos da história do cinema. O festival da Riviera não é nada se não bairrista – e especificamente nesse bairro, Marcello, Catherine e Chiara são a família real.

Nota:

Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.