"Megalopolis" (2024), de Francis Ford Coppola - American Zoetrope/Divulgação
American Zoetrope/Divulgação

“Megalopolis”: O ocaso de um império | Cannes 2024

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A famosa frase de Éric Rohmer de que todo filme é um retrato de seu tempo é um dos clichês mais batidos e referenciados pela crítica cinematográfica. Mas o maior motivo disso é que ela é verdade – e vale também para séries. Por mais que seja essencialmente um misto de farsa e tragédia shakespeareana, “Succession” é um comentário mordaz sobre a riqueza obscena e trágica da elite contemporânea – atualizando a herança corrosiva e cáustica dos diálogos do bardo inglês para os dias atuais.

Agora, imagine se o criador Jesse Armstrong não tivesse feito essa repaginação para os tempos modernos? Se você consegue conceber a resposta, é mais ou menos isso que Francis Ford Coppola tenta fazer em “Megalopolis”. O resultado é um misto de mise-en-scène teatral com visual cinematográfico e ambições épicas que não funciona como uma coisa nem outra: um filme perdido no tempo e que parece não saber bem o que quer dizer sobre o hoje – que sugere um cineasta nostálgico por um classicismo caucasiano e desconectado de sua época.



"Megalopolis" (2024), de Francis Ford Coppola - American Zoetrope/Divulgação
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A trama se passa numa espécie de Nova York distópica, a que o longa se refere como “Roma”. As referências ao império não param por aí: o conflito central é entre Cesar (Adam Driver), um arquiteto e visionário, sobrinho do bilionário Hamilton Crassus III (Jon Voight), que sonha em construir uma nova versão da cidade a partir de um material chamado megalon, que ele inventou e lhe rendeu o Prêmio Nobel; e o prefeito Frank Cicero (Giancarlo Esposito), que tenta manter as rédeas e seu controle sobre a política local. No meio dos dois, Julia (Nathalie Emmanuel), filha de Cicero, aproxima-se de Cesar, passa a trabalhar como sua assistente e se apaixona por ele.

Para não dizer que não falei de flores, o design de produção com que Beth Mickle e Bradley Rubin constroem essa “pólis” disto/utópica é estonteante – e o maior trunfo do filme. Com traços neoclassicistas imponentes que reforçam a nostalgia romanesca de Coppola, complementados pelos belos figurinos de Milena Canonero, a dupla é responsável por um interminável número de sets – de mansões a apartamentos, estádios, ruas e parques que deixam bem claro onde o cineasta investiu os US$ 120 milhões que tirou do próprio bolso para o orçamento.

Dito isso, as ambições épicas de “Megalopolis” naufragam no seu roteiro abissalmente ruim. Os diálogos vão do rebuscado shakespeareano, pretensioso e alienante, ao expositivo redundante – sem contar a narração em off despropositada de Fundi Romaine (Laurence Fishburne), motorista de Cesar, que depois é substituída por Julia até ser esquecida de vez. A personagem de Nathalie Emmanuel, por sinal, é das que mais padece com a qualidade sofrível do texto, sendo obrigada a proferir algumas frases que por vezes descrevem o que está na tela, por outras verbalizam o subtexto (bem óbvio) para o público – e a atriz faz o melhor com um papel que é filha de um homem, namorada e musa do outro, e nunca é pensada por Coppola como alguém que pode ser ela mesma detentora de uma visão própria para o futuro.

Julia, no entanto, é quase uma Lydia Tár perto da inacreditável Wow Platinum (sim, é esse mesmo o nome), vivida por Aubrey Plaza. Uma jornalista sensacionalista vulgar, caricata e criada por um olhar profundamente machista, a (desnecessária) personagem tem cenas que beiram o ofensivo e é interpretada pela atriz como se ela estivesse numa novela mexicana – e das piores. Se Plaza está no seu próprio filme, Shia LaBeouf – como Clodio Pulcher (sim, é esse mesmo o nome), o outro sobrinho de Crassus – também está no seu, num tom desvairado que chega a ser quase divertido como um sujeito degenerado que chega (uau) a se vestir de mulher.

"Megalopolis" (2024), de Francis Ford Coppola - American Zoetrope/Divulgação
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Ainda que se relevem todas essas falhas e inconsistências de narrativa e encenação, “Megalopolis” fracassa por parecer completamente desantenado de seu tempo. Coppola escala dois atores negros em papéis centrais, mas não demonstra o mínimo interesse em enxergá-los como tais: ao falarem sobre filosofia e política, Julia e Frank são obrigados a citar generais romanos como “fontes de sabedoria”, quando seria muito mais interessante se eles recorressem ao riquíssimo imaginário e conhecimento africano ao confrontarem Cesar.  Sem contar a cena ridícula em que Julia e Fundi, dois negros, discutem e confrontam a polícia para proteger um homem branco – e fica tudo por isso mesmo. E o pior de tudo: com todas as personagens femininas e não-brancas do filme, Coppola defende com seu longa que César – um homem branco, herdeiro e arrogante, ou seja, o Elon Musk da história – é o gênio que detém a chave para o futuro da humanidade.

Com isso, fica difícil defender o criador de “O Poderoso Chefão“, “Apocalypse Now” e “A Conversação” – verdadeiras obras-primas do cinema. Megalopolis” é provavelmente o pior trabalho da carreira do cineasta, com uma segunda metade que introduz uma mudança brusca de linguagem visual – recorrendo a split screens e fusões até então ausentes, que sugerem a possibilidade de que o orçamento da produção foi acabando, e Coppola teve que fazer um mexidão para resolver a coisa. Entre essas duas metades, o enfant terrible da Nova Hollywood cria o único momento realmente disruptivo do longa, que funcionou em Cannes, mas é inviável nos cinemas do resto do mundo. Ainda assim: não digam que não falei de flores.

Nota:

Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.

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