Desde a narração em off de Travis Bickle em “Taxi Driver”, o cinema sempre serviu como uma ferramenta para o roteirista – e cineasta – Paul Schrader dar vazão a seus fantasmas e sua visão niilista de mundo, assombrada por um cristianismo carregado de culpa e violência. A novidade em “Oh Canada” é que a verborragia típica do diretor é falada diretamente para uma câmera em cena. É como se o filme reconhecesse que é só por meio do cinema que Schrader consegue exorcizar seus demônios.
Isso porque o longa, adaptado do romance de Russell Banks, gira em torno do documentarista Leonard Fife (Richard Gere) que, à beira da morte, vítima de um câncer agressivo, torna-se objeto ele mesmo de um documentário dirigido por seus ex-alunos. Padecendo numa casa de repouso em Montreal, sob os cuidados da esposa Emma (Uma Thurman), ele aceita conceder uma entrevista ao filme-dentro-do-filme, e “Oh Canada” alterna entre essa filmagem e os flashbacks narrados pelo protagonista, em que ele revela como foi parar no país do título, fugindo do recrutamento para a Guerra do Vietnã.
O dispositivo é uma desculpa, nada sutil ou disfarçada, para o próprio Schrader fazer um inventário de sua vida, sua arte e sua geração. Do cabelo ralo à barbicha por fazer e a cadência de voz ranzinza e feérica, Gere está claramente interpretando seu diretor – numa boa atuação, caracterizada sob medida, sem ser caricata. O fato de que o galã do momento Jacob Elordi vive o personagem nos flashbacks diz apenas do ego do cineasta.
Essas memórias – contadas de forma não-linear, um pouco fugidias e nem sempre coerentes, como as lembranças de um velho – são quase invariavelmente acompanhadas da trilha musical criada por Phosphorecent (nome artístico do músico e compositor norte-americano Matthew Houck). Com uma sonoridade que lembra Simon & Garfunkel e Bob Dylan, as canções deixam bem claro o Novo Cinema dos anos 1970 que Schrader deseja evocar. Até certo ponto, a estrutura não-linear e a música funcionam, o que não é o caso da fotografia em preto e branco aleatória, presente em certos momentos e outros não – uma epidemia que se alastra pelo cinema recente, de “Oppenheimer” a “Duna – Parte II”.
O fato de que Gere toma o lugar de Elordi em algumas cenas também é justificado, como se Leonard se inserisse nas suas memórias e tentasse reescrevê-las ou reencená-las, sugerindo sua pouca confiabilidade. Já Thurman (que, verdade seja dita, não envelheceu muito bem como atriz, mostrando-se bem limitada no papel) aparecendo como uma outra personagem a certa altura das memórias do protagonista é confuso e causa um certo estranhamento, uma expectativa de que as duas seriam a mesma pessoa – o que não é o caso.
Esses pequenos defeitos, associados ao fato do longa ser quase todo filmado em estúdio, com um design de produção e figurinos bem simples, quase televisivos, denotam como “Oh Canada” é um filme pequeno – não num sentido necessariamente pejorativo, mas em termos de orçamento e escopo. Se fosse dirigido por qualquer outra pessoa, ele não estaria na competitiva oficial de Cannes, nem mesmo numa paralela. Com Schrader atrás das câmeras (e de certa forma, também na frente), a produção soa como o canto do cisne de um veterano, embebida de nostalgia, arrependimentos, dúvidas, mágoas e equívocos – e até mesmo de uma cafajestice meio misógina, com Leonard aparentemente seduzindo e pegando toda mulher que vê pela frente. E esse escopo menor funciona bem melhor para esses sentimentos que a escala megalômana de Francis Ford Coppola em “Megalopolis”.
O fato do cineasta colocar seu protagonista falando direto para uma câmera e – por meio do dispositivo montado pelos personagens – para sua esposa e para o mundo confere uma certa sinceridade melancólica ao filme. Se ela nem sempre funciona muito bem, ou se as revelações da trama têm bem menos impacto do que o roteiro imagina, são problemas que diminuem esse “tamanho” do longa, tornando-o talvez um pouco esquecível, nada marcante, mas não descartável ou absolutamente ruim.