O início de “Pigen med nålen” (“A Garota com a Agulha”) — segundo longa exibido na competição do 77º Festival de Cannes — leva o/a espectador/a a esperar um melodrama clássico – e um tanto previsível. Na Dinamarca do fim da Primeira Guerra, Karoline (Vic Carmen Sonne), sem notícias do marido Peter (Besir Zeciri), dá ele como morto no front e começa um caso com o patrão Jørgen (Joachim Fjelstrup), dono da fábrica de costura onde trabalha. A guerra acaba e – claro – o cônjuge volta, desfigurado. Grávida do amante, a protagonista abandona Peter e decide ficar com Jørgen que, pressionado pela mãe, desiste do romance e larga a jovem sozinha, desempregada e à própria sorte.
Seria a premissa perfeita para um melodrama mudo estrelado por Lilian Gish. E na fotografia em preto e branco que não poupa closes nos rostos sofridos de suas atrizes, na trilha agourenta de Frederikke Hoffmeier e na ambientação da trama no final da década de 1910, os clássicos dos primórdios do cinema pré-sonoro são uma clara referência para “Pigen med nålen”. No entanto, se a teórica Lauren Berlant afirma que o melodrama é o gênero por excelência do “lamento feminino”, do seu sofrimento e martírio, o diretor sueco Magnus von Horn subverte essas expectativas, ao revelar o calvário de Karoline, na verdade, como um filme de terror.
A jovem decide doar a filha para adoção, com a ajuda da providencial Dagmar (Trine Dyrholm), que ela conhece durante uma tentativa frustrada de aborto. Só que Karoline se arrepende e, quando vai atrás da menina, a bebê já não está mais disponível. Com um misto de arrependimento, contrição e falta de rumo na vida, a protagonista acaba por ficar trabalhando com Dagmar, amamentando os bebês recém-entregues, antes que eles sejam encaminhados para seus destinos.
O que acontece a partir daí, baseado num caso real, é melhor não ser revelado. No triângulo formado por Karoline, Dagmar e sua filha, a pequena Erena (Ava Knox Martin), “Pigen med nålen” desconstrói com uma frieza cirúrgica e uma violência brutal uma série de máximas machistas e equivocadas sobre mulheres e maternidade. Nem toda mulher está pronta para ser mãe – o que não significa que um dia ela não estará. Uma mulher não se torna mãe “magicamente” ao engravidar. Mães são seres humanos, cometem erros e se arrependem, como qualquer pessoa. Num contexto patriarcal, abusivo e misógino – ou, como ele é mais conhecido, no Estado Democrático de Direito – a maternidade pode servir como mais uma forma de violência contra a mulher, e sobreviver a ela pode ser algo igualmente violento.
Nas reviravoltas e nos atos chocantes da trama, o que mais incomoda no longa é a ausência de julgamento moral com que o cineasta sueco filma a história. Não existem monstros no filme. Karoline comete erros, mas sempre se arrepende logo em seguida. Dagmar é um ser amoral, para dizer o mínimo, mas não deixa de ser maternal com a protagonista e com Erena que, mesmo criança, não deixa de reproduzir ela mesma os atos que acontecem em sua casa. E quando eles vêm à tona, e tudo fica exposto, von Horn não oferece uma lição moral pronta e digerida. Ele deixa que o espectador tire suas próprias conclusões e julgue aquelas pessoas a partir de seus próprios valores.
Nesse gesto de convocar a empatia do público por suas mulheres no mínimo complexas, o cineasta conta com a ajuda das atuações estupendas de Vic Carmen Sonne e Trine Dyrholm. Com um rosto anguloso e olhos expressivos, Sonne (revelada no bom “Terra de Deus”) parece quase ressuscitada de um filme mudo para se sujeitar ao martírio e à tortura vividos por Karoline, filmados por von Horn e pelo diretor de fotografia Michal Dymek em closes impiedosos que não deixam em nenhum momento a protagonista escapar das consequências de suas escolhas. E com “Rainha de Copas” e agora “Pigen med nålen”, Dyrholm ameaça – se não usurpa – o título de Isabelle Huppert da atriz ideal para interpretar personagens de moral no mínimo questionável, no máximo repugnante. No longa de von Horn, a escolha entre uma e outra fica sob sua responsabilidade – ele não vai fazer isso por você.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.