Quem assistiu à recente minissérie “Fellow Travelers” tem uma boa ideia de quem foi Roy Cohn. Braço direito do senador Joseph McCarthy nos anos 1950, e gay enrustido, ele foi responsável pela perseguição, julgamento, demissão e destruição da vida de várias pessoas não-heterossexuais nos EUA, especialmente funcionários/as das várias esferas do governo.
“The Apprentice” (“O Aprendiz”) acrescenta mais um crédito nefasto ao currículo do crápula: a criação e ascensão do ex-presidente norte-americano Donald Trump. O filme escrito pelo ex-repórter da New York Magazine Gabriel Sherman, e dirigido com virtuosismo pelo iraniano Ali Abbasi (“Border”, “Holy Spider”), retrata Cohn como o mentor e molde (a)moral do empresário e figura política que conhecemos hoje. O resultado remete a “O Poderoso Chefão” original na sua relação de criador e criatura, mestre e pupilo, vampiro e vampirizado que revela, em última instância, o nascimento de um sociopata.
O longa começa em meados dos anos 1970, quando um jovem Donald Trump (Sebastian Stan) conhece Roy Cohn (Jeremy Strong) no bar de um clube para milionários e pede sua ajuda, como advogado, num processo por racismo movido pelo governo contra o grupo imobiliário de seu pai, Fred (Martin Donovan). É a deixa para Cohn ensinar ao protagonista todas as táticas pelas quais Trump é conhecido hoje: nunca reconhecer um erro, usar o ataque – moral, legal, golpes baixos, o que for necessário – como defesa, e entender que a verdade é apenas o que ele diz, o que ele quer que ela seja, e nada mais. Em suma, aquilo que se chama atualmente de pós-verdade, e a constatação de que regras e leis não se aplicam a homens cis brancos ricos – base da antipolítica e da derrocada da democracia contemporânea.
“The Apprentice” tem um início tenso e imprevisível, com Abbasi não hesitando em encenar esse encontro e o estabelecimento da relação entre os dois como uma espécie de aliciamento. Cohn era conhecido por seu gosto por garotos loiros e mais novos, e ele claramente vai testando até onde pode ir com seu novo pupilo. A ambição de Trump faz com que ele finja demência para os avanços e a sexualidade do mentor, e o/a espectador/a é colocado no meio desse flerte macabro entre dois sociopatas. O longa, no entanto, faz uma providencial curva à direita, evitando um rumo que poderia descambar na homofobia e segue a relação da dupla até os anos 1980, com a ascensão empresarial de Trump enquanto Cohn sucumbe à infecção pelo vírus HIV.
É exatamente nessa transição de uma década para outra que Abbasi faz sua escolha de realização mais ousada e um dos grandes trunfos de seu filme. Na primeira metade, nos anos 1970, a fotografia granulada de Kasper Tuxen (“A Pior Pessoa do Mundo”) abusa do zoom, dos chicotes rápidos de câmera e de um estilo quase documental remetendo ao cinema norte-americano da época. Quando a história adentra a década de 1980, porém, a janela, a iluminação e a textura mudam bruscamente, dando um susto no público, que de repente se dá conta de que a Abbasi e Tuxen simulam agora uma imagem em VHS, como um antigo material de arquivo gravado em vídeo.
Além de imprimir um aspecto documental que confere certa verossimilhança à produção, o recurso dá personalidade e originalidade à linguagem visual de um filme cuja maioria das cenas consiste em homens (brancos) falando em escritórios, ruas, bares e salas. O resultado confirma Abbasi, cujo “Border” é um dos longas mais singulares dos últimos anos, como uma das grandes promessas do cinema contemporâneo. Ao bom trabalho de fotografia, soma-se a montagem ágil de Olivia Neergaard-Holm (parceira usual do cineasta), em parceria com Olivier Bougge Coutté (também de “A Pior Pessoa do Mundo”), e a trilha sinistra de Martin Dirkov que anuncia o tempo todo os rumos funestos que a trama irá seguir.
Nada disso funcionaria, porém, sem as excelentes performances da dupla Stan & Strong. A maior virtude da performance de Sebastian Stan é a sutileza, evitando o clichê das várias caricaturas de Donald Trump e mostrando-o como um jovem bobão, ambicioso e inexperiente no início, e só deixando os maneirismos faciais e a agressividade mesquinha e perniciosa do protagonista surgirem à medida que o protagonista vai abrindo mão da pouca humanidade que ainda tem. O resultado provavelmente já tem o nome inscrito nas indicações ao Oscar do ano que vem e pode render a ele a Palma de melhor ator em Cannes.
Já Strong faz de Cohn uma espécie de Nosferatu laranja, e se sua completa amoralidade e arrogância iniciais lembram um pouco o Kendall Roy de “Succession”, a performance do ator nas sequências finais do personagem quase convencem o/a espectador/a a sentir pena de um completo canalha. Sua última cena com Ivana Trump – uma ótima Maria Bakalova que, auxiliada pelo bom roteiro, confere inteligência e dignidade à personagem – é um dos grandes momentos de “The Apprentice”.
No fim das contas, o filme de Abbasi e Sherman retrata Trump como um homem que, nunca amado de verdade pela família, não é capaz de amar ninguém a não ser ele mesmo. A ironia e a tragédia de sua história é que a única pessoa que talvez tenha realmente gostado dele, Cohn, é alguém que ele trai sem nenhum tipo de remorso. Os fiéis e eleitores do protagonista que se aventurarem a ver o filme vão enxergar nele a jornada de um herói – e é inegável que a história de Trump é aquilo que a cultura norte-americana mais valoriza, o self-made man, o Grande Gatsby. Já quem aprendeu a ler, interpretar e que ainda habita o plano da realidade vai ver mesmo os primórdios do fim da dita democracia norte-americana.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.