Esta 77ª competitiva oficial do Festival de Cannes tem se sagrado como a edição dos medalhões decepcionantes. Coppola fez o que pode ser considerado o pior filme de sua carreira. Paul Schrader realizou um longa pessoal, mas esquecível. E na segunda à noite, foi a vez de David Cronenberg tropeçar feio com uma produção confusa que parece um misto de Super Cine genérico com Cine Privé estrelado por atores famosos – e levou a plateia de jornalistas aos risos, e não intencionalmente.
“The Shrouds” (ou “As Mortalhas”) deve ser considerado, no entanto, com algumas ressalvas. O filme é resultado de um processo de luto do cineasta pela morte de sua esposa, com quem foi casado 43 anos – e a trama deixa claro o quanto ele ficou abalado pela perda. Além disso, o projeto foi originalmente elaborado como uma minissérie que o diretor canadense tentou vender para a Netflix, sem sucesso, sendo posteriormente transformado num longa. Talvez em cinco ou seis horas, Cronenberg tivesse elaborado um pouco melhor a confusa trama carregada de teorias da conspiração, ameaças russas e hackers chineses.
A história começa até bem, com algumas sequências marcadas pelo humor macabro e inusitado do cineasta. Karsh (Vincent Cassel) é uma espécie de ricaço tentando com dificuldade superar a morte da esposa, Becca (Diane Kruger). Num encontro às cegas arranjado por seu dentista, preocupado com sua arcada dentária em deterioração, ele revela que comprou um cemitério e desenvolveu uma mortalha digital que permite, por meio de um aplicativo, que alguém que tenha perdido um ente querido acompanhe o processo de decomposição do/a defunto/a através de microcâmeras transmitindo ao vivo de dentro do caixão 24h.
Alguns túmulos desse “Big Brother Cemitério”, no entanto, são vandalizados, a rede é hackeada, Karsh perde acesso ao sistema e precisa descobrir quem está por trás do ataque. Entre os suspeitos, estão os chineses que instalaram o sistema; a irmã gêmea de Becca, Terri (Kruger novamente); Maury (Guy Pearce), ex-marido de Terri e analista de sistemas que originalmente desenvolveu a tecnologia; uma cliente cega (Sandrine Holt) negociando um túmulo digital para o marido moribundo; ou até mesmo Hunny (Kruger de novo), uma avatar de Inteligência Artificial que serve de assessora pessoal para o protagonista.
“The Shrouds” é, portanto, basicamente um whodunit. E o seu maior problema é que a investigação é total e exclusivamente conduzida por meio de diálogos. Para um cineasta que ficou conhecido e imortalizado por sua criatividade e originalidade visual, é quase inacreditável o quanto o longa é verborrágico, cansativo e expositivo. Todo o desenvolvimento (bastante irregular) do mistério é contado, e não mostrado – e qualquer pessoa que tenha passado algumas noites de sábado assistindo ao Super Cine vai matar de cara quem é o/a culpado/a.
O filme sugere algumas reflexões interessantes sobre como as relações contemporâneas são estabelecidas por meio de telas, e como todas elas são vigiadas e mediadas pela tecnologia. Mas isso se perde numa trama genérica, que nunca é muito desenvolvida, sobre governo chinês e máfia russa que não tem nada a ver com os temas centrais que o diretor deseja abordar. Enquanto isso, um dos aspectos mais instigantes que o roteiro poderia explorar – o quanto a ideia do aplicativo reflete um desejo de controle masculino, obsessivo e tóxico, e mesmo de posse, sobre o corpo e a vida da mulher, mesmo depois de morta – é quase de todo ignorado.
Por sinal, essa ideia de um homem obcecado por uma mulher morta e tentando mantê-la viva de alguma forma é bastante hitchcockiana – de “Um Corpo que cai” a “Rebecca, a mulher inesquecível”, que Cronenberg cita diretamente no nome da esposa falecida. A inspiração, no entanto, para por aí, já que visualmente “The Shrouds” é pobre e pouquíssimo inspirado. Há momentos bons, em que Karsh é visitado por uma espécie de espírito de Becca, e o talento e o design de produção típicos de Cronenberg para corpos mutilados, vísceras e afins fica evidente. Fora isso, porém, o longa é um falatório interminável e absolutamente chato.
Se os diálogos fossem bons, a quantidade até poderia passar despercebida. Contudo, quando Diane Kruger é obrigada a dizer frases como “essa teoria da conspiração me deixou excitada, me foda agora”, ou quando o filme tenta solucionar o mistério numa cena em uma cachoeira digna de James Bond, em que o vilão tenta explicar seu plano, o riso involuntário ou a revirada de olhos é inevitável. “The Shrouds” deve ser considerado com certo respeito, tendo em vista a perda de Cronenberg – e Cassel, assim como Richard Gere em “Oh, Canada”, vive uma versão de seu diretor, desde o corte e a cor do cabelo até a postura corporal e o tom de voz – mas o resultado deixa claro que a transformação da minissérie em filme não deu certo e deveria ter permanecido enterrada.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.