Existe uma diferença entre criticar uma realidade, uma situação ou uma cultura e simplesmente reproduzi-la. É uma linha tênue, especialmente quando a crítica é feita por meio da sátira, porque você não quer nem ser sutil demais que o comentário e a posição contrária não sejam perceptíveis, nem exagerar muito a ponto de se tornar óbvio e caricato. “A Substância” (The Substance), de alguma forma, consegue a façanha de cometer esses dois erros, resultando no que é, até agora, o pior filme da competitiva do 77º Festival de Cannes.
O segundo longa da diretora francesa Coralie Fargeat (“Vingança”) abusa do espetáculo visual permitido pelo cinema de gênero – especificamente, a ficção científica e o body horror – e faz dele uma muleta para um roteiro fraco e mal desenvolvido. Imaginando criticar aquilo que simplesmente reproduz, e com que se diverte e sente um claro prazer sensório-visual, o filme desperdiça uma boa performance da sumida Demi Moore e o que claramente foi um trabalho de design de produção caro e minucioso.
A trama acompanha Elizabeth Sparkle (Moore), uma ex-atriz famosa e atual apresentadora de um programa de TV fitness. Prestes a ser substituída por uma opção mais jovem e atraente, ela é oferecida – e aceita – a substância do título. Trata-se de uma espécie de pacto com o diabo que permite criar um clone, ou duplo, que mantém a consciência da protagonista, só que numa versão (e num corpo) mais jovem dela mesma, que ela batiza de Sue (Margaret Qualley) e com quem deve passar a alternar sua vida. Cada uma tem direito a viver sete dias e, depois, deve dar lugar à outra. Se as regras forem quebradas, as consequências serão brutais.
Em sua alegoria óbvia e pouco sutil, “A Substância” deseja claramente criticar a obsessão da cultura ocidental – especialmente, a hollywoodiana – com a juventude e a beleza feminina. O problema é que seu o roteiro é tão raso, cheio de furos e mal desenvolvido que o longa acaba simplesmente transformando essa obsessão num espetáculo de tortura do corpo feminino – infligido por Elizabeth sobre si mesma. Entre esses furos, está a ideia de que Sue tome o lugar da protagonista no programa de TV – o que ela consegue imediatamente, mesmo sem aparentemente ter um passado, documentos, conta bancária, currículo ou qualquer experiência prévia.
Fargeat quer justificar isso com o fato de que Hollywood é dirigida por um monte de homens brancos, velhos, babões e tarados – sua sutileza é tamanha que o nome do executivo do canal onde Elizabeth e Sue trabalham é Harvey (Dennis Quaid, exagerado e caricato). Só que a falta de cuidado ou desenvolvimento torna seu retrato desse sistema frágil, óbvio e falho, sem acrescentar nada de novo a tudo que já foi dito e denunciado desde o advento do #MeToo (e mesmo antes dele), a não ser sangue, vísceras e violência.
O outro grande problema – talvez o maior – de “A Substância” é que Elizabeth é uma personagem aparentemente sem vida. Ela não tem família, amigos ou qualquer contato social. O filme a isola cada vez mais em seu apartamento, onde ela insiste em continuar o uso da substância, mesmo quando as coisas saem do controle – e elas saem MUITO do controle, e rápido – o que torna cada vez mais difícil se importar com ela. Sem nenhuma outra personagem feminina além da protagonista e Sue, e com o retrato dos bastidores da TV óbvio e pouco explorado, o longa acaba passando a impressão de que a própria Elizabeth é a culpada por sua tortura e seu inferno, já que é ela mesma persistindo na toxicidade daquele processo.
A intenção de Fargeat, deve-se dizer, é sugerir que a sociedade e a cultura ocidentais são as verdadeiras responsáveis. No entanto, sua crítica se resume a reproduzir com sua linguagem visual os mesmos vícios desse sistema, o que acaba por repetir e reforçar o prazer visual dessas imagens – no quarto ou quinto close na bunda de Margaret Qualley, é quase impossível não ficar desconfortável. Além disso, o comentário feminista encenado por ela é, no mínimo, problemático. A espiral e a derrocada mental de Elizabeth são manifestadas principalmente por meio do ato de comer – numa mise-en-scène que estigmatiza a comida como algo repugnante e abjeto. E a metáfora mais óbvia da “substância” é cirurgia e procedimentos plásticos, algo que permite rejuvenescer – e criticar mulheres que desejam realizar intervenções em seu corpo (com o qual elas podem fazer o que bem entenderem) é ultrapassado e um tanto misógino.
“A Substância” tenta mascarar todas essas falhas com uma linguagem visual e sonora over em todos os sentidos. O design de produção de Stanislas Reydellet cria um universo totalmente cosmético e literalmente plástico, lembrando os videoclipes do fim dos anos 1990 e início dos 2000, quando um clipe musical de 4 ou 5 minutos tinha o orçamento com que se fazem três filmes indies hoje – a profundidade da narrativa do longa é a mesma desses vídeos, por sinal. Da mesma forma, a edição de som exacerba cada mínimo ruído, desde o ato de mastigar até um chute ou o fechar de uma porta, buscando despertar uma reação sensorial no espectador.
O resultado de certo modo funciona, até se tornar absolutamente cansativo. Com 2h20, o filme de Fargeat deixa sua mensagem bastante clara numa sequência de extrema violência contra o corpo de uma das personagens, mas não satisfeito, ainda se estende por mais meia hora, explicitando de forma reiteradamente redundante sua visão monstruosa daquelas mulheres de maneira óbvia e de extremo mau gosto. Na sua ambição visual, a cineasta imagina referenciar de Cronenberg a Kubrick a “Carrie, a Estranha” nesse ato final, só que a essa altura, o/a espectador/a já se desligou emocionalmente e, exausto, deseja apenas que a (literal) tortura termine logo.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
LEIA TAMBÉM: “A Substância”: Hollywood está pronta para seu close-up, e o que vemos é monstruoso
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.