Trei kilometri cannes
Cinema é sobre aquilo que se decide mostrar e não mostrar. E também sobre como se mostra: o posicionamento dos elementos no quadro, o que está no centro, o que é deixado à margem, o que está na frente ou atrás. O único gesto de afeto ou prazer queer em “Trei kilometri pana la capatul lumii” (ou “A três quilômetros do fim do mundo”) acontece na extremidade do quadro, quase fora dele – um dos atores chega a sair do enquadramento. Porque o longa do diretor romeno Emanuel Parvu não é um filme queer ou mesmo gay – e, sim, um drama sobre homofobia. E é ela que ocupa o centro do quadro o tempo todo.
Curiosamente, porém, o espancamento brutal sofrido pelo jovem Adi (Ciprian Ciujdea), que desencadeia toda a trama, não é mostrado pelo cineasta. A elipse gera quase um certo alívio no/a espectador/a, que não é obrigado a testemunhar um ato de violência extremo e criminoso. Mal ele/a sabe, porém, que o que vai assistir na próxima 1h30 é muito pior.
Filho do pescador Florin (Bogdan Dumitrache) e de uma dona de casa (Laura Vasiliu), Adi é espancado após sair de uma boate acompanhado de um turista na pequena vila onde os pais vivem. Ele é levado ao hospital, o que dá logo início uma investigação pelo chefe de polícia (Valeriu Andriuta) que, mesmo corrupto e pouco ético, não tarda em descobrir que os agressores são os dois filhos de uma espécie de ricaço mafioso local, Zentov (Richard Bovnoczki), com quem Florin tem uma dívida.
Até esse ponto, “Trei kilometri” parece mais um derivado de “Polícia, adjetivo” e tantos outros longas romenos sobre a corrupção no país. Contudo, quando os pais do jovem descobrem o motivo do espancamento, o fato de Adi e o turista terem se beijado, eles ficam chocados e iniciam uma empreitada brutal e grotesca para dissuadir o filho de sua orientação sexual – ou, em último caso, puni-lo por ela.
A partir daí, o jovem passa a ser vítima de uma série de violências físicas e psicológicas que são talvez piores que o espancamento inicial – afinal, são perpetradas por sua família. O filme se torna 90 minutos de uma espécie de tortura em que Parvu coloca o espectador na posição de Adi, que é amordaçado, preso, atacado e ofendido de todos os lados. É sufocante, angustiante e profundamente desagradável.
O cineasta, no entanto, não está interessado em fazer de Florin e da mãe os grandes – ou únicos – vilões da história. Eles são pessoas limitadas numa situação delicada, o que não justifica a violência indefensável que infligem no filho – o que os dois fazem é monstruoso e imperdoável. Mas Parvu filma grande parte das cenas com a câmera aberta, num plano geral enquadrado com o formalismo típico do cinema romeno contemporâneo, porque o que lhe interessa é retratar o sistema – a estrutura social daquela aldeia. Porque é esse sistema heteronormativo, homofóbico e criminoso o grande culpado.
O policial está apenas preocupado com a forma de resolver aquela situação sem por em risco sua aposentadoria precoce. Sua moralidade corrompida é demonstrada de forma cáustica pelo diretor na cena em que ouve a confissão dos irmãos agressores, enquanto ele e seu parceiro tomam uma taça de vinho branco e comem da tábua de frios e frutas servidos por Zentov. O padre, por sua vez, quer apenas manter seu controle sobre a mãe carola, não hesitando em oferecer soluções brutais para a situação.
Polícia, igreja, sociedade, pais – todos são perpetradores da violência praticada contra Adi que, como uma vítima de estupro, vê sua violação ser reiterada e piorada a cada novo golpe sofrido. E é essa violência que ocupa o centro do quadro o tempo todo em “Trei kilometri”. Não por acaso, na primeira cena em que aparece com os pais, o jovem fica no fundo do quadro, e os dois em primeiro plano. Parvu usa o tempo inteiro essa profundidade de campo do plano fixo para mostrar como a homofobia que retrata é pervasiva e penetra todas as camadas daquele microuniverso.
Nesse sentido, o drama romeno é mais um longa nesta edição de Cannes que dirige um olhar impiedoso e implacável sobre pais imperfeitos (com Florin e sua esposa merecendo de longe o título de piores até agora) e uma periferia violenta e constritiva. O diretor quer claramente julgar e condenar aquelas pessoas por seus atos e, mesmo na ausência de uma trilha musical melodramática ou manipuladora – traço comum desse neorrealismo romeno atual –, ele não é nada sutil na sua abordagem e não poupa ou perdoa ninguém ali. “Trei kilometri” é violento, impiedoso e pouco interessado em nuances. O único elemento atenuante que o torna minimamente suportável é que Adi, em nenhum momento, sente vergonha ou culpa pelo que é – nem baixa a cabeça para a violência que lhe é dirigida. Se aquela aldeia ainda parece existir em 1950, o jovem e sua amiga Ilinca (Ingrid Berescu) claramente são dois viajantes do tempo ali vindos de 2024.
E não se trata aqui de discutir a ética de expor na tela toda a violência retratada. Porque casos assim ainda existem, não só no fim do mundo da Romênia, mas também no Brasil e em todos os países. Então, eles devem ser mostrados no cinema. Mas eu, tendo saído de um lugar não muito diferente daquela aldeia, saí do cinema tremendo, abalado, em lágrimas e com o corpo doendo. É um filme com uma série de gatilhos, e quem não se sentir preparado ou confortável para encará-lo não deve se sentir obrigado a fazê-lo. Retratar a violência não significa perpetuá-la, e todos têm o direito de se proteger dela da melhor maneira que entenderem.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
Trei kilometri cannes
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Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.