Há uma cena em “Diamant Brut” — primeiro filme exibido na competição principal no 77º Festival de Cannes — em que a protagonista Liane (a estreante Malou Khebizi) se maquia diante do espelho, preparando-se para o que considera a grande chance de sua vida. Os traços de cores, bases e pós que ela espalha no rosto, filmado num close fechado, fazem parecer que a personagem é um soldado se camuflando para a batalha. A maquiagem, no entanto, é menos uma camuflagem do que parte de uma armadura que, junto com o figurino, o cabelo e a atitude periguete, a jovem francesa usa para proteger e esconder a criança em busca de amor que existe dentro dela – e que, na verdade, ela ainda é.
Superficialmente, Liane pode ser vista apenas como mais um corpo no Instagram. Aspirante a influencer e a estrela de reality show, ela vive num apartamento mínimo e caótico com a mãe Sabine (Andréa Bescond), egocêntrica e irresponsável, e a irmã pequena que a protagonista efetivamente cria – o pai é uma ausência como sempre nunca comentada, o que torna fácil culpar a mãe por tudo. Com seios siliconados e lábios preenchidos, pagos por seu trabalho como garçonete, e um figurino minúsculo que parece aprisionar seu corpo no inferno de sua vida tanto quanto a janela (instagramável) 1:33 da fotografia, a jovem vê a grande chance de sair dali quando é chamada para o teste de elenco de um reality show chamado “Miracle Island”.
Todos aparentemente veem Liane apenas como esse corpo cosmeticamente construído – menos o longa de estreia da cineasta francesa Agathe Riedinger. A diretora enxerga a protagonista como o conflito entre esse corpo aprisionado por padrões e circunstâncias versus a ambição e o desejo implacáveis de ser rica e famosa que dominam sua mente. Entre a realidade abjeta e o sonho/fabulação/quimera, o corpo de Liane pode habitar a primeira, mas sua mente vive o tempo todo no segundo, recusando qualquer alternativa, por mais improvável, incerto e frágil que ele possa parecer.
Nesse retrato de uma jovem periférica experienciando o violento contraste entre um corpo de mulher e uma mente de menina, “Diamant Brut” se insere numa tradição de longas que vai de “Aquário” a “Garotas” e o recente “How to Have Sex” – não por acaso, todos dirigidos por mulheres: respectivamente, Andrea Arnold, Céline Sciamma e Molly Manning Walker. E infelizmente, na comparação com seus predecessores, o filme de Riedinger se revela o mais fraco do grupo, apresentando algumas falhas típicas de um longa de estreia, exacerbadas por uma posição na competitiva oficial do Festival de Cannes.
A principal delas é um roteiro fraco, com diálogos que insistem em expor de forma nada sutil a visão e o julgamento da cineasta sobre o universo retratado. Se em “How to Have Sex”, Manning Walker construía situações angustiantes e impossíveis, deixando que a encenação conduzisse o/a espectador/a a chegar a suas próprias conclusões e completar o filme a partir de suas experiências pessoais, “Diamant Brut” força o tempo todo suas concepções sobre aquele mundo com uma mão pesada que denota certa insegurança de uma primeira direção. O grande diferencial do longa francês em relação a seus antecessores é a presença da cultura tóxica das redes sociais e influencers como a grande vilã da história, mas Riedinger tem dificuldade em trabalhar com nuances e lacunas que permitam uma reflexão real e complexa por parte do público a respeito do tema, e não apenas um aceno afirmativo de cabeça.
Essa falta de sutileza se reflete na direção da promissora Malou Khebizi, cuja explosão a cineasta tem dificuldade de controlar e moldar; e na forma como o longa retrata a realidade de Liane, quase totalmente desprovida de alegria ou redenção, e de uma abjeção que beira o repulsivo. A única exceção é o afeto oferecido por Dino (Idir Azougli), ex-colega da protagonista no abrigo para menores e claramente apaixonado por ela, mas mesmo essa paixão eventualmente se manifesta como desejo pelo corpo da jovem. O maior problema, na verdade, é que o roteiro de Riedinger acaba se perdendo entre todas essas relações de Liane – a rejeição da mãe, o afeto de Dino, o cuidado com a irmã – sem conseguir se aprofundar muito em nenhuma delas. Com isso, os personagens acabam por se tornar meras ferramentas esquemáticas, cumprindo um papel na jornada da jovem, e menos pessoas reais e complexas como ela.
O foco disperso também se manifesta na fotografia de Noé Bach que, ao contrário do trabalho meticuloso e específico do figurino de Alice Lespiau, nunca parece saber muito bem como filmar esse corpo da protagonista entre o objeto e o sujeito. Há um plano ótimo, em que a câmera lentamente se aproxima de Liane, vestida em trajes sumários, enquanto é entrevistada para o tal teste de elenco: por meio do zoom, Riedinger e Bach mostram a diferença de como a protagonista é enquadrada pelo olhar do filme e, ao final, como ela será enquadrada e vista no programa – um mero pedaço de carne. Se o resto de “Diamant Brut” tivesse essa clareza e sutileza formal, presente também na boa trilha musical de Audrey Ismael, com um roteiro focado mais na história de uma criança adulta tentando ser amada e menos em emitir juízos de valor óbvios sobre a cultura contemporânea, o resultado seria excelente – e não mais um exemplar dos percalços e tropeços de um primeiro longa.