The Seed of the Sacred Fig
As mudanças climáticas são reais. Os recursos hídricos estão se esgotando. O abismo social só aumenta. As geleiras estão derretendo. A civilização humana – o tal antropoceno – está próxima do fim. O planeta não vai acabar, mas nós vamos. Ao menos – e esse é um “se” muito grande – que a geração de adolescentes e jovens tentando mudar o mundo hoje nos salve. Para isso, porém, é preciso que nós demos ouvidos a ela. E a estratégia do status quo, do “poder”, desde os primórdios da humanidade, é ignorar essa ânsia e esse ímpeto por transformação até que esses jovens cresçam e se tornem reaças cínicos e desencantados.
A “semente do figo sagrado” do título original de “The Seed of the Sacred Fig” é essa geração – e a potência destemida de esperança e salvação que ela carrega em si. O novo longa do diretor iraniano Mohammad Rasoulof (“Não Há Mal Algum”) – que estreou nos 45 do segundo tempo da competitiva do 77º Festival de Cannes, tornando-se imediatamente o favorito disparado à Palma de Ouro – olha para um Irã em transformação, com um regime em franca derrocada, e enxerga na juventude, especialmente feminina, a única força capaz de conduzir o país para o futuro.
A trama acompanha a família do casal Iman (Missagh Zareh) e Najmeh (Soheila Golestani), pais da universitária Rezvan (Mahsa Rostami) e da adolescente Sana (Setareh Maleki). O patriarca (em todos os sentidos) é promovido a investigador, a um degrau de se tornar juiz do tribunal revolucionário. Só que isso acontece bem às vésperas dos protestos em que mulheres tomaram as ruas do Irã após uma jovem ser assassinada pela polícia por estar sem seu hijab. Além das violências que é obrigado a cometer no trabalho, Iman ainda tem que lidar com as filhas progressistas em casa, acompanhando tudo pelas redes sociais e passando a questionar tudo e todos.
“The Seed of the sacred fig” foca a primeira metade de suas quase 3h de duração nas três mulheres da família. Presas no apartamento onde moram, com as aulas suspensas, elas acompanham os protestos à distância: Najmeh acreditando em tudo que a televisão estatal diz; Rezvan e Sana o tempo todo no Instagram, testemunhando a realidade da violência policial contra as protestantes. A contragosto, a mãe acaba ajudando Sadaf (Niousha Akhshi), colega da filha mais velha alvejada brutalmente no rosto, e começa, muito gradualmente, a questionar o que vê no noticiário. Ainda assim, seu maior objetivo é ajudar o marido a garantir sua promoção para que eles possam ter uma casa com três quartos e uma lava-louças.
É só quando Iman perde algo muito importante do seu trabalho que ele volta sua atenção para o que se passa em sua casa, desestabilizando os frágeis alicerces da família. Sem conseguir solucionar o problema, o pai passa a suspeitar e culpar as filhas e a esposa por seu lapso – afinal, num estado patriarcal, homens nunca erram. E o longa de Rasoulof toma um rumo imprevisível e explosivo.
Além da estrutura impecável do roteiro, que nunca tenta enganar o espectador, revelando cada informação na hora certa para que ele se torne cúmplice das personagens, potencializando a tensão e o suspense, um dos principais elementos de “The Seed of the Sacred Fig” são as locações. Na beleza discreta, mas confortável do apartamento da família, Rasoulof mostra como a revolução acontecendo hoje no Irã não começou nas ruas, mas sim dentro das casas. Se para a geração de Najmeh, aquele “lar doce lar” era um sonho realizado, suas duas filhas passam a enxergar – questionar e desrespeitar – a prisão e a ordem patriarcal que ele representa. O celular que elas têm sempre em mãos contrabandeia para o ambiente doméstico as imagens que desmentem o discurso oficial e fazem com que a geração de Rezvan e Sana percam a fé e o respeito por esse estado patriarcal que se vende como pai, mas ao ter sua máscara arrancada, revela o verdadeiro o monstro por trás dela – cuja lógica ultrapassada e violenta é evidenciada na encenação absurda de uma sequência de interrogatórios.
Quando Iman, esse estado-pai-monstro, percebe a perda de controle que isso representa, ele parte com a família, na hora final, numa viagem que é espacial, mas também temporal. Se as filhas querem arrastar o mundo à força para o futuro, o patriarca tenta levá-las de volta para um passado – quase literalmente, para a casa onde cresceu. O ato final do filme de Rasoulof se torna um thriller encenado em meio a ruínas abandonadas que representam um país e um regime prestes a desmoronar, culminando numa imagem que é uma síntese perfeita e catártica do discurso do cineasta – capaz de provocar palmas e lágrimas de alívio ao mesmo tempo.
E palmas não faltaram para “The Seed of the Sacred Fig” durante a projeção em Cannes. Da sequência tensa de um jantar em que Rezvan confronta as crenças dogmático-políticas do pai, a uma revelação de fazer cair o queixo do espectador, aos seus momentos finais, a produção iraniana manipula, e dialoga com, a tensão, o medo, a frustração e a impotência de viver no mundo hoje, oferecendo beleza, catarse e arte. Sem dourar a pílula, mas com esperança e um convite à ação, o longa é essencialmente uma parábola sobre como há certas coisas, a exemplo do poder, que o estado patriarcal nunca vai dar por iniciativa própria, elas têm que ser tomadas à força – num resultado que já tem uma mão (ou duas) na Palma de Ouro e deve muito provavelmente seguir firme até o Oscar do ano que vem.
Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.
Crítico de cinema desde 2004, filiado à Abraccine e à Fipresci. Jornalista e mestre em Cinema pela Universidade da Beira Interior, em Portugal, onde atualmente cursa o doutorado em Media Artes com pesquisa sobre cinema queer contemporâneo, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). É votante internacional do Globo de Ouro e já integrou o júri da crítica em festivais dentro e fora do país.