Sob a brilhante direção de Guel Arraes, o filme “Grande Sertão” reinventa um cenário único para a adaptação da obra literária de Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”. O diretor, já conhecido por “O Auto da Compadecida” (2000) e “Lisbela e o Prisioneiro” (2003), mais uma vez explora de forma singular o sentido de se fazer uma adaptação cinematográfica e dramática, deixando de lado as limitações de uma busca por realismo, intensificando a essência e poesia da obra de origem.
“Grande Sertão: Veredas” já foi adaptado outras vezes, em diversos formatos, no cinema, na TV e no teatro. Esta nova versão se destaca pela diferente forma de olhar para a obra. O enredo que originalmente tinha o cenário do sertão como parte intrínseca a narrativa, neste filme é modificado e contextualizado num ambiente urbano, sem definição de tempo, mas que se assemelha a uma realidade distópica de uma comunidade periférica, cercada por um muro imponente, e que se chama Grande Sertão. Assim, o roteiro adaptado (por Arraes e Jorge Furtado) estabelece um pensamento comparativo entre as guerras do sertão e as guerras urbanas, trazendo a violência como um ponto central e, a partir disso, explora as relações humanas entre os personagens. Este cenário fictício/futurista não apenas atualiza a narrativa, mas também lança uma luz sobre questões sociais e políticas da realidade brasileira contemporânea.
Riobaldo (Caio Blat) é um professor de história na periferia “Grande Sertão”, e em sua complexa e longa relação de afeto por Diadorim (Luísa Arraes), envolve-se na violenta guerra entre os bandidos e a polícia. Em uma narrativa com aspectos épicos e temas políticos, sobre guerra, amor, vingança e esperança, Riobaldo faz uma narração de cada acontecimento, como um registro consciente explicitado na última cena, o que modifica até mesmo a forma do filme.
Em sua estética visual deslumbrante, ressalta o valor de produção, fotografia e cenários que dão vida a uma ambientação urbana em ruínas, onde o lixo nas ruas e os plásticos ao vento permeiam uma belíssima cena de um beijo entre Riobaldo e Otacília (Mariana Nunes).
A caracterização deste universo não se limita apenas aos cenários, mas também aos personagens icônicos que ganham força e presença visual no longa a partir de suas representações, destacando-se o ator Eduardo Sterblitch, que interpreta Hermógenes. Com uma atuação impressionante, pela expressão corporal, uso da voz, maquiagem (com verrugas e deformidades pelo rosto se assemelhando a chifres), em cenas de provocações e diálogos sorrateiros, potencializados pela fotografia e efeitos sonoros, se aproxima a figura do diabo, que provoca e causa a violência e a guerra. Rodrigo Lombardi, como Joca Ramiro, e Luís Miranda, como Zé Bebelo, também apresentam visuais e atuações marcantes no filme.
A figura de Diadorim (Luisa Arraes), portanto, traz uma sensação ambígua. O que poderia ser uma representação de grande impacto narrativo, pela complexidade da personagem com características não-binárias (no longa não fica explícito como a personagem se identifica em seu gênero e sexualidade), acaba sendo pouco explorada. Um possível romance LGBTQ+ não se desenvolve e não se mantém no lugar de mistério como um plot twist para o espectador, apenas para Riobaldo que parece ser o único a não enxergar o que Diadorim representa.
Os diálogos literários e poéticos, somados às atuações caricatas e teatrais, são uma forte característica da autoria de Guel Arraes, que neste filme preenchem a experiência de imersão, propositalmente fugindo do realismo e potencializa a obra em sua proposta.
As reflexões sobre o contexto social e político do Brasil ecoam ao longo do filme, estabelecendo paralelos inquietantes entre os conflitos no sertão e na periferia urbana, entre o passado e o presente, entre a guerra e a busca pela redenção. É um paralelo com o livro de Guimarães Rosa e a repetição da própria história das guerras e conflitos do Brasil (tema das aulas de Riobaldo), que apresentam sempre a mesma dinâmica da violência, da repressão e até mesmo da luta de classes.
Ao criar uma originalidade em uma adaptação, Guel Arraes homenageia a obra original e também lança um olhar crítico sobre as relações humanas e o contexto de violência em que estão inseridas no cenário histórico do país. Com um enredo já conhecido e já revisitado em outras versões, o filme “Grande Sertão” é uma marcante experiência épica, poética e singular, característica da cultura brasileira representada na autoria do diretor, que nos faz aproximar e encantar novamente pela história narrada por Riobaldo. ■
GRANDE SERTÃO (2024, Brasil). Direção: Guel Arraes; Roteiro: Guel Arraes, Jorge Furtado; Produção: Manoel Rangel, Egisto Betti, Heitor Dhalia; Fotografia: Gustavo Hadba; Montagem: Fabio Jordão; Música: Beto Villares; Com: Caio Blat, Luisa Arraes, Luis Miranda, Rodrigo Lombardi, Eduardo Sterblitch, Mariana Nunes, Luellem de Castro; Estúdio: Paranoïd Filmes, Globo Filmes; Distribuição: Paris Filmes; Duração: 1h 44min.
Onde ver "Grande Sertão" no streaming:
Crítico, roteirista e professor. Graduado em cinema e audiovisual pelo Centro Universitário UNA. Desde 2017 atuando de forma independente em: produção e curadoria em projetos de cineclubes; análise/crítica; comentários de filmes em mostras de cinema; roteiro; ensino sobre linguagem cinematográfica, escrita, artes e mídias.