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“Serpico”: Al Pacino e Sidney Lumet, dois camaleões reunidos

"Serpico" (1973), de Sidney Lumet - Paramount Pictures/Divulgação

Paramount Pictures/Divulgação

O figurino geralmente é algo posto em segundo plano na maior parte das análises, críticas, comentários e estudos sobre os filmes. Talvez por não ser um elemento primordialmente cinematográfico, o design das roupas que os personagens vestem costuma ser notado e destacado apenas quando se trata de algo superlativo: recriações suntuosas de épocas passadas, como em “Agora Seremos Felizes” (1944), “Drácula de Bram Stoker” (1992) e “Maria Antonieta” (2006); ou reimaginações do mundo sob as lentes da fantasia e da ficção científica, a exemplo de “The Rock Horror Picture Show” (1975) e “Pobres Criaturas” (2023). Entretanto, a tarefa do/a figurinista é tão importante quanto a do diretor de fotografia, do cenógrafo e dos atores, já que é este conjunto de profissionais, ao lado do realizador do filme, que dará forma à mise en scène da obra.

“Serpico” (1973), estrelado pelo grande Al Pacino e dirigido pelo ainda maior Sidney Lumet – que completaria 100 anos em 2024 –, não seria o mesmo filme sem a colaboração da figurinista Anna Hill Johnstone. Ela trabalhou com alguns dos grandes diretores do século XX, como Elia Kazan, Miloš Forman e Arthur Penn. É dela o figurino de “O Poderoso Chefão” (1972), que captura com maestria o panorama sociocultural estadunidense das décadas de 1940 e 1950. Frequente parceira de Sidney Lumet, seus trabalhos mais marcantes com o cineasta certamente são “O Mágico Inesquecível” (1978) – cujos figurinos são os grandes responsáveis pela visualidade urbana nova-iorquina do filme – e justamente “Serpico”.

O longa-metragem, baseado no livro do jornalista Peter Maas (por sua vez inspirado em um caso real iniciado anos antes), segue o íntegro policial ítalo-americano Frank Serpico (Pacino), que denuncia a corrupção desenfreada na força policial de Nova York e precisa lidar com as represálias dos colegas e a negligência das autoridades. Os roteiristas Waldo Salt e Norman Wexler (indicados ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 1974) tomam a inteligente decisão de começar o filme do final. Já iniciamos sabendo que Frank (ou Paco, apelido pelo qual o vemos ser chamado mais tarde) foi baleado, talvez por um outro policial, o que faz com que todo o restante do filme, narrado ao público em flashback, transcorra à luz desta suspeita recorrente, de que a qualquer momento o protagonista pode ser emboscado pelos próprios colegas. Afinal, vamos descobrindo que Frank Serpico é um corpo estranho dentro do Departamento de Polícia: ele não agride suspeitos para obter confissões, não aceita dinheiro vindo de criminosos e não faz vista grossa sobre condutas ilegais.

E é justamente aí que entra a importância do figurino criado por Anna Hill Johnstone para Al Pacino. Seja através dos disfarces que usa para investigar crimes pelas ruas de Nova York ou pelas roupas que veste nas várias delegacias pelas quais passa ao longo do filme, Serpico parece sempre deslocado da institucionalidade policial. O trabalho de Hill Johnstone, com roupas muito casuais, desbotadas, gastas, largas e coloridas, somadas aos brincos, óculos, anéis, pulseiras e colares, dá ao personagem uma aparência quase contracultural, aumentando ainda mais a impressão de que estamos testemunhando um lobo solitário lutando contra um sistema corrupto. Raramente vemos o protagonista vestindo a farda, aumentando a dissociação entre ele e a Polícia. É como se estivéssemos assistindo a um homem comum, da classe trabalhadora, enfrentando uma das grandes instituições usadas pelo capitalismo para subjugar os mais pobres e os grupos minoritários, definição facilmente cabível para a polícia da Nova York dos anos 1970. A filmografia de Lumet está, aliás, repleta destas parábolas de Davi contra Golias, como é o caso do segundo e último filme feito pelo diretor com Al Pacino, o também espetacular “Um Dia de Cão” (1975).

A performance de Pacino, aliás, é uma das grandes responsáveis por tornar “Serpico” o grande filme que é, já que ele está presente em todas as cenas. Sendo um dos melhores atores que Hollywood já produziu, Al Pacino nunca faz o mesmo personagem. Michael Corleone é totalmente diferente de Tony Montana, que é completamente distinto de Sonny Wortzik, que por sua vez está muito distante de Frank Serpico. Para cada personagem, há trejeitos, fala, olhar e movimentos completamente novos. No caso do policial no filme de Lumet, Al Pacino investe na criação de uma figura facilmente identificável. Frank Serpico tem uma voz aguda e anasalada, geralmente falando entre os dentes, o que ressalta ao mesmo tempo sua pouca idade e também sua ingenuidade. Afinal, trata-se de um agente que acredita inocentemente poder mudar a Polícia de Nova York a partir do interior da instituição.

O mesmo idealismo, ou melhor, a mesma simplicidade sonhadora, também está presente na construção gestual que o ator empresta ao personagem. Serpico sempre anda, se senta ou fica de pé de maneira largada, expansiva e desalinhada, passando a impressão de ser uma pessoa comum, e não alguém que trabalha para um aparato de ordem e repressão. Porém, nada disso vem sem complexidade. Al Pacino nos mostra que o mesmo Serpico que brinca alegremente com crianças na rua, passeia com seu amado cachorro e é divertidamente doce pode ser também agressivo e sexista com suas namoradas e ter explosões de raiva e violência tanto com colegas quanto com suspeitos de crimes, o que tira o personagem do lugar do herói e adiciona nuances à sua personalidade. É um policial que ouve Puccini e se interessa por balé enquanto convive com o submundo do crime de Nova York. Frank Serpico nos parece, ao fim e ao cabo, uma pessoa real e por isso mesmo multifacetada – com ótimos ideais mas falhas humanas –, com a qual poderíamos cruzar em uma esquina a qualquer momento.

"Serpico" (1973), de Sidney Lumet - Paramount Pictures/Divulgação
Paramount Pictures/Divulgação

Nada disso é novidade para Sidney Lumet, cineasta célebre pelos dramas humanos complexos e pela profunda consciência social de seus filmes. Mas o diretor, nova-iorquino de coração e de filmografia, também é reconhecido por seu domínio absoluto da imagem. Pensemos na impecável blocagem do clássico “12 Homens e uma Sentença” (1957), ou nos elegantes e funcionais movimentos de câmera de “Um Dia de Cão”. Em “Serpico”, Sidney Lumet faz um trabalho não menos primoroso, embora mais discreto, à maneira do cinema clássico. Temos sua marca registrada, o movimento de câmera que começa em um plano médio ou americano até se transformar em um close-up de algum ator em estado de grande tensão emocional, como é o caso do Chefe Green, na primeira cena do filme, depois de ver Frank ferido no hospital. O percurso inverso também acontece, a exemplo do testemunho da vítima de estupro no início do filme, quando a câmera sai de seu rosto para nos mostrar os policiais ao redor ouvindo o relato. A câmera de Lumet sempre parece estar posicionada no lugar certo, preparada para interagir com os atores e o cenário de maneira precisa. Quando Serpico é deixado por sua segunda namorada, por exemplo, a câmera o filma correndo atrás dela em um plano aberto por uma rua de Nova York. Porém, o próximo plano é fechado no rosto dos atores, de modo que o choque entre enquadramentos tão distintos faz com que a intensidade e a carga emocional do último diálogo dos dois seja amplificado.

Algumas escolhas visuais também se provam muito funcionais para o andamento da narrativa. A casa em que Serpico vive, por exemplo, sempre está envolvida em sombras, que conseguimos ver tanto nos cantos dos cômodos e bordas do quadro quanto na superfície das pessoas que transitam pelo ambiente, quase de modo a explicitar imageticamente a entrada progressiva do protagonista em um mundo obscuro e de moral ambígua. Isso é realçado em um dos planos mais representativos do filme, já se aproximando do fim, quando vemos apenas a silhueta de Serpico treinando no estande de tiro à medida que o alvo vem em sua direção. O longa-metragem e seu diretor também aproveitam muito bem o inesperado uso do Technicolor, em um filme que poderia apelar para uma paleta soturna e desbotada, mas prefere deixar o universo diegético mais vibrante e vivo, o que apenas aumenta a atmosfera um tanto quanto utópica que envolve as ações de Serpico na tentativa de corrigir a corrupção policial.

“Serpico” termina em uma conjuntura triste e agridoce que é capturada tanto pela sensibilidade de Al Pacino quanto pela simplicidade de Lumet, e ainda mais pela trilha sonora jazzística e de inspiração italiana composta por Mikis Theodorakis, presença pontual mas marcante ao longo do filme. O personagem principal é mostrado tendo uma série de animais de estimação ao longo do filme. Poderíamos então dizer que ele é o camaleão, graças ao figurino de Anna Hill Johnstone, mas também à exímia habilidade de Al Pacino, e certamente devido à maestria de Sidney Lumet, diretor tão versátil quanto talentoso. A celebração de seus 100 anos é a oportunidade perfeita para revisitar esta que é uma das filmografias mais contundentes da sétima arte. ■

"Serpico" (1973), de Sidney Lumet - Paramount Pictures/Divulgação
Paramount Pictures/Divulgação

Nota:

SERPICO (1973, EUA). Direção: Sidney Lumet; Roteiro: Waldo Salt, Norman Wexler (baseado no livro de Peter Maas); Produção: Martin Bregman; Fotografia: Arthur J. Ornitz; Montagem: Dede Allen; Música: Mikis Theodorakis; Com: Al Pacino, John Randolph, Jack Kehoe, Biff McGuire, Barbara Eda-Young, Cornelia Sharpe, Tony Roberts, Allan Rich; Estúdio: Artists Entertainments Complex, Artists Entertainments Complex, Produzion De Laurentiis International, Manufacturing Company; Distribuição: Paramount Pictures; Duração: 2h 10min.

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