Talvez o feito mais surpreendente de uma obra de arte seja reunir diversas influências, propostas e elementos e, ainda assim, conseguir um resultado temática e estilisticamente coeso. Pensemos nas pinturas de Hieronymus Bosch, no final do 1º ato da ópera “O Barbeiro de Sevilha”, ou em filmes como “Hausu” (1977) e “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (2022). São trabalhos que driblam o risco de parecerem bagunçados e desordenados e, pelo contrário, explicitam o absoluto controle e domínio de seus criadores sobre as ferramentas expressivas à disposição em cada campo artístico. Risco este que rondava incessantemente minhas expectativas em torno de “MaXXXine” (2024), novo filme de Ti West e capítulo final da trilogia iniciada com “X – A Marca da Morte” (2022).
O longa-metragem, que traz Mia Goth reprisando seu papel de Maxine Minx, agora em Los Angeles, prometia trazer uma miscelânea de conceitos, imagens e referências diversas do horror, dos anos 1980 e do cinema em geral. Pelos trailers, que geralmente prefiro não assistir, mas que me venceram pela curiosidade, era possível ver que o filme lidaria com as cruéis armadilhas da busca pela fama na cidade dos sonhos e com a onda de assassinatos cometidos pelo Night Stalker; também ficava claro que haveria citações diretas a “Psicose” (1960) – inclusive com o aparecimento de cenários do filme – e ao cinema giallo; tudo isso em meio à gravação de um filme de terror estrelado justamente pela personagem-título (o fictício “A Puritana 2”) e ao passado de Maxine voltando para assombrá-la de múltiplas formas, tendo como pano de fundo o cenário moralmente reacionário dos Estados Unidos na década de 80. Parecia coisa demais para um filme só, ainda mais se considerarmos o quão econômicos são os antecessores de “MaXXXine”, “X” e “Pearl” (2022).
Após uma aguardada espera por parte dos fãs fieis que a trilogia arregimentou, a terceira parte finalmente está ao alcance do público. E, embora seja um bom filme, “MaXXXine” acaba fechando o ciclo como a obra menos interessante de Ti West neste universo. “X – A Marca da Morte” tinha poucos personagens, um cenário reduzido e uma inspiração estética clara: “O Massacre da Serra Elétrica” (1974). “Pearl” se mantinha no mesmo local, com menos personagens ainda e acenos claros aos melodramas dos anos 1950 tanto do ponto de vista formal quanto da história contada; no caso desta prequel, parece ter sido fundamental a participação de Mia Goth na escrita do roteiro, já que o enredo e os personagens apresentam muito mais complexidade do que o que nos é apresentado nas outras entradas da trilogia.
Já em “MaXXXine”, o aparente excesso de elementos acaba prejudicando o andamento da trama. Por um lado, a quantidade de personagens e linhas narrativas a serem apresentados faz com que pelo menos a primeira hora de filme seja uma sucessão de cenas mal conectadas que, uma após a outra, nos mostram uma faceta da história – é curioso pensar que Ti West, também o montador do longa, não encontrou uma forma melhor de construir a progressão do enredo. Alguns cortes, como por exemplo o que leva à primeira aparição do assassino observando Maxine no clube noturno, chegam a soar confusos. No caso deste, a figura do vilão é introduzida e ganha destaque no quadro e na cena de forma abrupta, sem um preparo anterior à altura da importância do personagem. A primeira metade do longa-metragem, então, acaba se tornando arrastada, como se o roteiro e a montagem ainda não tivessem encontrado os trilhos certos e estivessem tateando por vários lugares aqui e ali.
Ao mesmo tempo, e justiça seja feita, o roteiro é competente o bastante para conseguir um feito raro: caracterizar bem quase todos os seus muitos personagens, todos eles interpretados pelos atores no mais alto nível de excelência exigido por cada tipo de papel. A melhor personagem, a cineasta Elisabeth Bender (Elizabeth Debicki), diretora da sequência de terror estrelada por Maxine, incorpora de forma precisa o estereótipo da mentora rigorosa, criando uma persona que – intencionalmente ou não – lembra muito a da atriz Katharine Hepburn. Já Molly Bennett (Lily Collins), protagonista do “A Puritana” original, tem um momento marcante no qual conversa com Maxine e explica como seu grito entrou para a história do cinema – referência clara às scream queens típicas dos filmes gialli e slasher. John Labat, o investigador privado contratado pelo assassino, tem as melhores frases de efeito e lembra uma imitação divertidamente afetada de Jack Nicholson em Chinatown (1974), até com o curativo no nariz em certo ponto. Mesmo o Detetive Torres, um dos investigadores envolvidos na busca pelo Night Stalker, vai além de uma caricatura de policial. Descobrimos em sua primeira aparição que ele não realizou o sonho de se tornar ator de Hollywood, e seu “fracasso” é usado pela colega continuamente para descredibilizá-lo.
Dentre todos esses personagens, porém, a mais subaproveitada parece ser, ironicamente, a protagonista. Esta é a pior Maxine, em termos de desenvolvimento de personagem. Mia Goth (neta da atriz brasileira Maria Gladys) é uma grande atriz, mas tem um material pouco inspirado em um filme que supostamente deveria lhe dar maiores complexidades. A própria personagem move pouco a trama, mais reagindo do que tomando atitudes autônomas. Mal vemos Maxine falar ou ter conversas substanciais com aqueles que convivem com ela. Há também um problema de coerência na protagonista: ora ela é egocêntrica e insensível, ora é atraída por um chamado altruístico e demonstra espasmos de sentimento. Diferente de Pearl, no segundo filme, é difícil nos conectarmos com uma personagem cujo objetivo (“ser famosa”) é vagamente construído e que possui pouco ou nenhum vínculo de afeto real com qualquer outra pessoa ao longo da história. Trata-se de uma protagonista demasiadamente pragmática e fria e, por isso mesmo, pouco interessante. Até mesmo o trauma dela com Pearl, que poderia indicar um bom caminho, apontando para o rompimento de um ciclo de infelicidade feminina, é mal aproveitado. Pearl é citada por volta de três vezes, e nenhuma delas passa o devido peso que a lembrança representa para Maxine, funcionando muito mais para cenas de suspense fracas e deslocadas, como a da sala de maquiagem, ou referências que, por mais interessantes que sejam, não justificam aparecer atreladas a um trauma tão mal explorado – caso da visita ao Motel Bates de “Psicose”. E, além de tudo isso, no terceiro ato esta subtrama de trauma envolvendo a protagonista da prequel é simplesmente esquecida e nunca mais retorna.
Em termos de cinema de gênero, “MaXXXine”, por mais que tente, não funciona totalmente como um filme slasher – há poucas mortes, e nenhuma delas é o que se poderia chamar de memorável. O longa também não se sustenta integralmente como um giallo, mesmo com signos evidentes, como o assassino vestido de preto e os planos-detalhes da mão enluvada segurando a faca afiada – falta uma trama de investigação mais bem construída. O terceiro filme do universo concebido por Ti West se sai melhor na crítica tanto a Hollywood quanto ao fundamentalismo religioso dominante nos anos 1980. A cidade dos sonhos, por um lado, é vista como um lugar que corrompe as pessoas, levando-as a fazer de tudo pela fama – um estado de coisas muito bem representado por Teddy Knight (Giancarlo Esposito), agente de Maxine, e seu modo de resolução de problemas. Já os moralistas e reacionários que se escondem sob o manto da religião, por outro lado, são vistos como um problema concreto, ainda maior, tanto por sua perseguição à arte e ao cinema de horror quanto por sua arrogante hipocrisia. Tudo isso ganha ares mais complexos quando nos lembramos que o horror foi vítima – com os reiterados cortes que os filmes sofriam – e algoz do conservadorismo – com sua final girls virgens e seus assassinos que matavam aqueles que viviam sua sexualidade.
Chegamos então ao antagonista e às mortes em “MaXXXine”. A identidade do serial killer nunca é exatamente um mistério, e ele mal aparece antes de ser revelado a ponto de se tornar marcante, não passando, na verdade, de um avatar do que já vimos melhor executado nos filmes de Mario Bava e Dario Argento. O roteiro e a direção de Ti West, de forma muito acertada, não caem na armadilha de vitimizar majoritariamente os corpos femininos como os gialli e slashers clássicos. Vemos a violência explícita apenas contra homens, e as vítimas mulheres são mostradas somente quando já sem vida. No entanto, o longa-metragem dá um passo atrás e incorre em um clichê já conhecido: matar o personagem negro da forma mais violenta. É certo que Leon (Moses Sumney), proprietário de uma vídeolocadora e amigo de Maxine em Los Angeles, não é o primeiro a morrer, mas seu assassinato é o mais gráfico, com mais elementos de giallo. Ele não tem nem mesmo sobrenome, e muito menos uma função na trama a não ser ter o corpo atravessado várias vezes pela faca do matador. Para além dessa cena, temos a morte do próprio assassino, quando Ti West faz uma bem-vinda homenagem a “Scanner, Sua Mente Pode Destruir” (1981), e a descoberta do corpo esquartejado de Molly, após uma tensa sequência na casa do assassino, nas colinas de Los Angeles – o desenrolar dos fatos, com a descoberta de um culto e um tiroteio com a polícia, soa não intencionalmente cômico, mas é coerente com o cinema dos anos 80 que o filme várias vezes referencia.
“MaXXXine” é um filme divertido, que fecha com dignidade a trilogia, apesar dos problemas e de um final pouco inspirado. Seu início, com a porta do estúdio se abrindo e Mia Goth entrando vagarosamente no foco da luz, em um enquadramento milimetricamente pensado, me fez ter expectativas altas. Logo depois, quando ela sai do teste e vai para o carro, e os créditos aparecem perfeitamente alinhados com os elementos da mise-en-scène, tive ainda mais esperanças de que veria algo especial. Também no começo, quando ela desarma e imobiliza um perseguidor e provável assassino na rua, senti que o filme iria por caminhos interessantes – esta cena tem um uso da arma de fogo e um final impressionantes, auxiliados por uma construção de suspense a partir da montagem, da iluminação e das cores que é digna dos melhores filmes slasher dos anos 1980.
O filme de Ti West acaba se perdendo algumas vezes, é verdade, o que desvaloriza esses bons momentos em meio a uma miscelânea de elementos que vão do fraco desenvolvimento ao reforço desnecessário – é espantosa a quantidade de vezes que o filme repete ao público que a história se passa em Hollywood. Mas, por outro lado, “MaXXXine” faz bem ao não depender dos outros filmes para funcionar, assim como é bem-sucedido em fechar a jornada da personagem que começamos a acompanhar em “X”. Ao contrário de Pearl e de seus próprios amigos, Maxine não aceita uma vida que ela não merece. Em meio à desordem da cidade dos sonhos e de um terceiro filme irregular, nasce uma estrela. ■
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.