"Sem Coração" (2023), de Nara Normande e Tião - Cinemascópio/Divulgação
Cinemascópio/Divulgação

“Sem Coração”: Olhar fantástico para a juventude real

Com arpão empunhado, máscara de mergulho e olhar acostumado, a menina desponta na água salgada e marca o início da narrativa realista-fantástica de “Sem Coração”, filme dirigido e roteirizado pela alagoana Nara Normande e o pernambucano Tião. O longa-metragem teve sua estreia mundial na Mostra Competitiva Orizzonti, na 80ª edição do Festival de Veneza, e veio como um aprofundamento vulnerável do curta homônimo, realizado pela dupla no ano de 2014.

Como fio narrativo da trama principal de Nara e Tião temos Tamara (Maya De Vicq), uma jovem de classe média que vive com os pais e o irmão em uma pequena cidadezinha pesqueira no litoral de Alagoas. Prestes a se mudar para Brasília, ela deseja aproveitar seus últimos dias no cenário paradisíaco que a cercou por toda a vida, porém se enxerga cada vez mais curiosa sobre a solitária filha de pescador conhecida na vila pelo apelido de “Sem Coração” (Eduarda Samara), graças à cicatriz que carrega no peito.

É com uma sensibilidade extensa que, seguindo a trama cheia de dualidade entre as duas distintas protagonistas, o universo realista se mistura ao fantástico para criar uma história latente de descoberta – do outro e de si mesmo. “Sem Coração” emana uma nostálgica visão do que significa crescer e é belo compreender que muitas das experiências e sentimentos retratados em tela são espelhos daquilo vivido pelos seus diretores e, até mesmo pela atriz Eduarda, cujo aspectos de vida várias vezes se mesclam com a de sua personagem.



À medida que o filme se desenrola, mais evidente se torna a melancolia se misturando com a sensação de liberdade que acompanha Tamara e seu grupo de amigos enquanto desbravam o mar, a areia, a mata costeira e as construções que os cercam. Essa liberdade, porém, existe de verdade? O roteiro de Nara e Tião perpassa pelas contradições e um grande ponto positivo do filme é justamente o de encapsular os sentimentos quase universais da adolescência em personagens inseridos em condições políticas e sociais totalmente distintas. Assim sendo, mesmo tratando da universalidade de crescer, “Sem Coração” tem grandes momentos capazes de deixar claro como essa fase da vida, assim como todas as outras, também consagra privilégios para uns e obstáculos para outros.

Tamara e Sem Coração são garotas similares, com questionamentos similares, contudo não poderiam ser mais diferentes, possuírem pensamentos e mentalidades mais opostas. Apesar de dividirem o mesmo espaço, elas não verdadeiramente dividem o mesmo espaço e uma das descobertas da juventude é justamente a de perceber como o mundo é segregado, dividido, julgador. Também é nessa fase que começamos a questionar quem vamos ser nessa realidade. O que vamos fazer diferente? O que não pudemos mudar?

Envolta nessas incertezas da juventude, a obra cinematográfica de Nara e Tião se utiliza do aspecto fantástico justamente como forma de contornar e expandir os sentimentos dos adolescentes. Com resultado interessante, essa particularidade eleva a trama e demarca uma experimentação proveitosa, porém acaba por soar levemente distante da narrativa, destoando-se dos demais momentos de descoberta trazidos durante sua duração.

De maneira delicada, a narrativa dos últimos dias de Tamara na cidadezinha que adora abre portas para os seus primeiros entendimentos sobre como e quem vai ser no futuro, mas, também, como e quem é no presente.

Ser jovem é doloroso, melancólico e belo. “Sem Coração” também é tudo isso. ■

Nota:

SEM CORAÇÃO (2023, Brasil, França, Itália). Direção: Nara Normande, Tião; Roteiro: Nara Normande, Tião; Produção: Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho, Justin Pechberty, Damien Megherbi, Nadia Trevisan, Alberto Fasulo; Fotografia: Evgenia Alexandrova; Montagem: Juliana Munhoz, Edu Serrano, Isabelle Manquillet; Música: Tratenwald; Com: Maya de Vicq, Eduarda Samara, Alaylson Emanuel, Maeve Jinkings, Kaique Brito, Eules Assis, Erom Cordeiro, Ian Boechat, Lucas Da Silva, Elany Santos; Estúdio: Cinemascópio, Vitrine Filmes; Distribuição: Vitrine Filmes; Duração: 1h 32min.

filme sem coração

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