Sequências de filmes bem-sucedidos costumam ser aguardadas com um misto de expectativa e receio. Existe a esperança de que a nova obra recupere as qualidades da original e expanda o universo apresentado no primeiro filme, mas também o medo de que ela desperdice oportunidades e leve a história para lugares equivocados. Quando falamos de um filme cultuado, a apreensão é maior ainda, e o entusiasmo cai drasticamente. Afinal, qual a necessidade de mexer com algo já tão consolidado? E, se o original é um clássico da história do cinema, lançado décadas atrás, o receio se torna quase infinito, e a expectativa, próxima de zero. Trata-se do ímpeto capitalista de Hollywood, que aposta na segurança para manter seu imperialismo econômico e cultural na indústria do cinema, correto? Não há dúvidas. O desastre chamado “O Exorcista: O Devoto” é a prova mais recente disso, dentro do gênero horror.
Mas, a despeito das aspirações muito pragmáticas da capital mundial do cinema, 2024 tem sido um ano surpreendentemente positivo para as sequências tardias. “A Primeira Profecia”, uma prequel do clássico setentista, foi o primeiro bom exemplo da temporada. Porém, agora, o diretor Fede Álvarez – já conhecido por trazer de volta a franquia “Evil Dead” com o excelente remake “A Morte do Demônio”, de 2013 – eleva o nível de exigência para este tipo de produção. Com sua ficção científica de terror, “Alien: Romulus” (2024), o cineasta uruguaio, que tem feito carreira em Hollywood, dá uma aula sobre como se fazer sequências tardias de obras-primas – continuando um filme que faz 45 anos em 2024.
Ambientado entre os eventos de “Alien: O Oitavo Passageiro” (1979) e “Aliens, O Resgate” (1986), a história segue um grupo de jovens colonos espaciais que, enquanto vasculham uma estação espacial abandonada, ficam cara a cara com uma forma de vida perigosamente resistente e instintivamente assassina. Na equipe, conhecemos Rain Carradine (Cailee Spaeny), lavradora que perdeu os pais e deseja recomeçar a vida em outro planeta, e seu irmão, Andy (David Jonsson), que logo descobrimos ser um andróide, além do casal Bjorn (Spike Fearn) e Navarro (Aileen Wu) e dos também irmãos Tyler (Archie Renaux) e Kay (Isabela Merced).
O grupo embarca na missão de roubar as cápsulas criogênicas da estrutura abandonada que está sobrevoando sua órbita, na tentativa de, assim, fugirem para um planeta distante e mais próspero. A estação espacial, composta pelas seções Rômulo e Remo, era o local de trabalho de um outro grupo que, como vemos no prólogo, resgata um espécime petrificado do Xenomorfo. Quando os protagonistas chegam, então, os compartimentos estão infestados pelas criaturas mortíferas, várias delas já crescidas, outras no estágio de facehuggers.
O que mais salta aos olhos neste novo filme da franquia é o quanto Fede Álvarez consegue recuperar a atmosfera tanto do primeiro quanto do segundo longa-metragem originais. Trata-se de uma combinação muito bem feita, em termos de cinematografia e montagem, do horror de “Alien: O Oitavo Passageiro” e da ação de “Aliens, O Resgate”. Por um lado, em certos momentos, temos os lentos tracking shots acompanhando os exploradores à medida que descobrem os espaços da estação, aliados aos planos estendidos que mostram a ameaça de fundo e mantêm em suspenso o que os personagens farão para driblá-la. Por outro, vemos rápidos movimentos de câmera e cortes dinâmicos acompanhando os embates entre os jovens e os alienígenas.
Visualmente, o filme adota a paleta soturna do primeiro, criando ambientes claustrofóbicos e gerando cantos pouco iluminados que podem ser redutos dos antagonistas. No que diz respeito às imagens, é também interessante como Fede Álvarez demonstra inteligência para criar quadros muito eloquentes: seja mostrando um pássaro em uma gaiola para justificar o ímpeto de fugir da protagonista, ou imbuindo a luz do sol na pele dos personagens de uma aura quase metafísica para dizer da possibilidade de futuro para o grupo, ou ainda, se valendo de um aparelho portátil futurista de raio-x para mostrar um alienígena no interior do corpo de uma personagem e, assim, construir tensão e horror, é perceptível o cuidado do realizador com a criação de imagens ricas em significado e profundidade dramática. Já em termos de ritmo, a obra segue a estrutura do segundo filme, habilmente colocando instantes de tensão e aparente calmaria na sequência, o que amplifica a crescente de suspense, já que a certa altura os personagens passam a ter um tempo limitado para sair da estação espacial e, assim, se salvar.
Aliás, tanto a direção quanto o roteiro, assinado por Álvarez e Rodo Sayagues (parceiro de longa data do cineasta, inclusive em “A Morte do Demônio”), são bem-sucedidas na construção de uma progressão épica para a história. Primeiro, o objetivo do grupo é entrar e encontrar as cápsulas criogênicas; depois, vão em busca do combustível para elas; três deles ficam presos com diversos facehuggers, e é necessário resgatá-los; mas, com isso, as criaturas saem e se prendem a uma das personagens; os jovens aparentemente conseguem libertá-la, mas a esperança se prova falsa; e por aí vai. Ou seja, os acontecimentos seguem em uma escala de seriedade cada vez mais intensa, na qual cada resolução é também catalisadora de um novo problema, ainda maior que o anterior.
Rain, a exemplo da Ripley de Sigourney Weaver, é quem faz às vezes de heroína. Porém, diferente da protagonista do primeiro filme, aqui sabemos desde o início que ela, ao lado do irmão andróide, são o foco da história. Fede Álvarez e Rodo Sayagues parecem querer, a propósito, explorar o laço fraterno, ao invés da maternidade, trabalhada nos dois primeiros filmes da franquia (em especial no segundo, com Ripley e sua “filha”). Além dos irmãos protagonistas e de Tyler e Kay, existe também a referência a Rômulo e Remo e a criatura final, que pode ser vista como elo biológico entre humanos e alienígenas – uma ideia tão imageticamente assustadora quanto conceitualmente original, que ironicamente conecta este filme a várias outras obras de horror extraterrestre já feitas.
Mas é da relação entre a protagonista e seu irmão que surgem os principais questionamentos do filme. Até que ponto um andróide pode ter sentimentos e, assim, manter laços de irmandade com um ser humano? O roteiro habilmente acentua essa problemática com uma virada na metade do filme, quando Andy assume outras diretrizes da corporação Weyland-Yutani. Porém, a “humanidade” dos jovens do grupo também é posta em xeque com a revelação de que o planeta ao qual se direcionam não aceita seres artificiais, e, portanto, o andróide da equipe terá de ficar para trás.
Toda essa complexidade é acentuada pelas ótimas interpretações de Cailee Spaeny e David Jonsson. O elenco está, no geral, excelente – embora os personagens não tenham, todos, a mesma sinergia entre si presente no original –, mas os dois protagonistas se destacam. Spaeny tem um roteiro e uma direção que dão protagonismo à sua personagem – diferente do que ocorre em “Priscila” (2023) e “Guerra Civil” (2024), outros dois filmes recentes nos quais integra o elenco principal –, permitindo à atriz mostrar a sua versatilidade dramática, tanto nos momentos de terror, quanto nos instantes mais introspectivos. Pela primeira vez, e a despeito de seu porte físico, ela está fora do lugar-comum de “menina vulnerável”, e consegue impor sua presença (através da voz, dos olhares e dos movimentos corporais altivos) como uma personagem adulta e forte, tal qual Sigourney Weaver. Seu irmão em cena, por outro lado, tem um desafio talvez maior: ele deve transitar entre uma personalidade inocentemente afetuosa, no início e fim do filme, e outra, friamente pragmática, no segundo ato, porém mantendo a artificialidade de um andróide. David Jonsson demonstra controle absoluto do ritmo de seu corpo e da entonação de suas palavras, tornando perfeitamente críveis as motivações, angústias e transformações do personagem através de olhares profundamente eloquentes.
Tal verdade nas interpretações também pode ser creditada a um outro fator muito importante: os efeitos visuais e a maquiagem excelentes, a maior parte deles feita de forma prática, o que ajuda os atores a reagirem de forma mais genuína ao seu entorno. É quase possível sentir a textura dos facehuggers, ou a rígida estrutura do Xenomorfo (ele próprio, “interpretado” pelo ator Trevor Newlin), tal qual nos filmes clássicos da franquia. A estação espacial, o cosmos e o planeta onde os jovens moram e trabalham também parecem ambientes concretos, nos quais se pode pisar e tocar, mérito da competente equipe dos designers de produção.
É interessante notar ainda como este filme consegue reunir os cenário amplos, ascéticos e mecanizados do primeiro filme com a profusão de criaturas orgânicas, pegajosas e repulsivas do segundo, maximizando elementos já fortes quando separados, mas mais aterrorizantes ainda quando combinados em um mesmo longa-metragem. Notável ainda a disposição do diretor de mostrar mais os ataques das criaturas e seu efeito no corpo das vítimas, o que não chega a transformar o filme em um body horror ou em uma exploração do gore, mas torna as investidas mais brutais e, por isso mesmo, mais ameaçadoras.
Talvez o filme tropece levemente apenas quando, na esteira de “Aliens, O Resgate” e também do horror contemporâneo, incorpora alguns clichês que não se encaixam aqui, como as frases de efeito em momentos de tensão. Mas a sagacidade de Fede Álvarez camufla esses deslizes em meio à coragem de pegar conceitos pouco aproveitados dentro da própria franquia e dedicar a eles grandes momentos de seu filme. O fato de as criaturas sangrarem ácido, por exemplo, não chegou a ser efetivamente utilizado nos dois primeiros exemplares da série, para além de servir como um alerta constante aos personagens. Pois em “Alien: Romulus”, vemos toda uma cena (brilhantemente escrita e filmada, diga-se de passagem) dedicada a explorar esse aspecto biológico mortal dos monstros.
Temos também a surpresa de ver um rosto conhecido no filme, parcialmente vindo do longa-metragem original, e recriado por meio de computação gráfica: Rook, um andróide com a mesma fisionomia do Ash de Ian Holm, está praticamente destruído na estação espacial quando o grupo de jovens chega. A certa altura, porém, ele desperta, graças à voz e aos movimentos faciais do ator britânico Daniel Betts. Certamente há implicações éticas nesta decisão já disseminada na indústria, de trazer um ator morto de volta à vida, mas é inegável a coerência do uso do recurso aqui. Afinal, além de ser uma boa referência ao primeiro filme, que respeita a natureza do personagem e o trabalho que o ator desenvolveu, o que os realizadores estão fazendo é se valer da tecnologia para replicar, na diegese, um ser do primeiro filme que é totalmente fabricado. Rook é, literalmente, dentro e fora da história, uma criatura artificial.
“Alien: Romulus” consolida Fede Álvarez como um forte nome quando o assunto é trazer de volta uma franquia. Mas, além disso, o filme prova que, com mentes verdadeiramente criativas por trás dos projetos, liberdade dos estúdios e afeto pelo material de origem, sequências podem ser mais do que apenas lançamentos caça-níqueis. O novo filme mantém o nível de qualidade dos dois primeiros, ao mesmo tempo introduzindo o universo criado por Dan O’Bannon, Ronald Shusett e Ridley Scott para uma outra geração e abrindo caminho para novas histórias. Para o horror de todos os amantes da ficção científica, “Alien” está mais vivo do que nunca. ■
Onde ver "Alien: Romulus" no streaming:
Jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema, aproveita qualquer oportunidade para falar sobre sua paixão, a sétima arte. Com passagem pelo Curso Técnico em Química do CEFET-MG, iniciou os estudos de forma bem parecida com o começo do próprio cinema: em um laboratório manipulando substâncias químicas. Por quase dois anos, foi estagiário na RecordTV Minas, tendo uma rotina quase tão louca quanto a dos protagonistas de “Rede de Intrigas”. Participou do 6º Talent Press Rio e integrou a Assessoria de Comunicação da Fundação Clóvis Salgado, em Belo Horizonte.