“Lydia me disse que estava ligada à amiga por um tubo invisível, como dois vasos comunicantes. Sempre que estava triste, Salomé estava feliz. E vice-versa. […] Se Salomé ia viver, como dizem, o dia mais feliz de sua vida, o que aconteceria com ela?”
Lydia é uma mulher adulta com horários levemente desregulados pelos plantões no hospital onde trabalha como parteira. Ela acaba de terminar um relacionamento displicente e recebe a notícia de que sua melhor amiga, Salomé, está esperando uma criança. Tudo indica uma normalidade quase frívola em seu dia a dia e esse sentimento transpassa para dentro de si desde os primeiros momentos de Le Ravissement, ou “Rapto”, longa-metragem de estreia da diretora francesa Iris Kaltenback.
Exibida na Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2023 e lançada no Brasil pela Imovision, a obra utiliza tom expositivo em sua primeira meia-hora para montar a incerteza do que vem a seguir. Nossa protagonista é, acima de tudo, uma mulher vazia em busca de preenchimento e, quando conhece o motorista de ônibus Milo, parece depositar nele sua chance de felicidade. Depois de apenas uma noite juntos, porém, ele dispensa uma possível continuação do romance e Lydia se fecha ainda mais em seu próprio universo.
Assim, a narrativa de “Rapto” se desenvolve com o suspense se esgueirando pelas banalidades. E é justamente a maneira simples com que os fatos se desenrolam na primeira metade do filme, que a evidente escalada nos sentimentos da protagonista se tornam instigantes. Lydia se deixa preencher de amores pela filha recém-nascida da amiga e, pouco a pouco, faz dela uma ponte para, mesmo que de maneira involuntária, viver uma ilusão.
Com cores esverdeadas e azuladas contrastando com o vibrante vermelho do casaco utilizado pela personagem em uma pluralidade de cenas, a fotografia do longa colore lindamente a história de desespero decorrendo em tela. Essa história, por sua vez, acontece de maneira singela no início e, a cada minuto avançando, torna-se mais impetuosa, com o suspense dando lugar às ações concretas de Lydia.
Durante todo o tempo, assistimos a essa mulher perdida dentro de si mesma e, através de uma atuação esplêndida de Hafsia Herzi (“A Boa Mãe”), as movimentações da protagonista soam excepcionalmente naturais, até mesmo razoáveis. Em “Rapto”, olha-se com delicadeza para uma mulher vivenciando um colapso interno tão grande, que passa a envolver todos ao seu redor e efetivamente se metamorfoseia em um ato desesperado.
Nos seus quase 100 minutos de duração, a maior parte do filme trata justamente do cenário anterior à essa ação. Essa parcela da obra é excelente e, apesar de não mergulhar profundo, traz à tona temas como maternidade e solidão diante de uma perspectiva feminina. As cenas que se desenrolam após o ápice, porém, parecem um tanto quanto óbvias, além de escolhas fáceis para o fechamento da trama dramática. Dessa maneira, os minutos finais desonram o delineado bem feito do longa-metragem.
Apesar disso, “Rapto” é uma obra de estreia cheia de potência que embarca na psique de uma mulher solitária para narrar uma história sobre tristeza, mentira e o quão longe nossos sentimentos podem nos levar. ■
filme rapto
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RAPTO (Le ravissement, 2023, França). Direção: Iris Kaltenbäck; Roteiro: Iris Kaltenbäck; Produção: Alice Bloch, Thierry de Clermont Tonnerre; Fotografia: Marine Atlan; Montagem: Pierre Deschamps, Suzana Pedro; Música: Alexandre de La Baume; Com: Hafsia Herzi, Alexis Manenti, Nina Meurisse, Radmila Karabatic, Dusko Badnjar; Estúdio: MACT Productions, Marianne Productions; Distribuição: Imovision; Duração: 1h 37min.
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Onde ver "Rapto" no streaming:
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), pós-graduanda em escrita criativa e apaixonada pelo cinema, literatura e artes em geral. Passou pela Folha de Pernambuco, Revista O Grito e revista Continente como estágiaria, além de já ter contribuído para o jornal Suplemento Pernambuco.