"Sindicato de Ladrões" (On the Waterfront, 1954), de Sidney Lumet - Columbia Pictures/Divulgação
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“Sindicato de Ladrões”: Quando as estrelas convergem no cais

O dia 14 de agosto de 2024 marcou a partida de uma das maiores atrizes da história do cinema. Gena Rowlands, inesquecível em filmes como “Uma Mulher sob Influência” (1974) e “Noite de Estreia” (1977), faleceu aos 94 anos, deixando um legado imenso por sua técnica, expressividade e entrega total a personagens complexas e desafiadoras. A morte de Rowlands despertou minha atenção, mais uma vez, para a finitude, mesmo daqueles que consideramos imortais. Com o falecimento dela, perdemos também todas as chances de homenageá-la e reconhecê-la, em vida e reiteradamente, por seu talento e profissionalismo. Por isso, essa triste efeméride reacendeu meu desejo de escrever sobre outra grande atriz hollywoodiana que merece, enquanto ainda está entre nós, ser celebrada por sua contribuição inestimável para a sétima arte. Trata-se de uma singela homenagem a Eva Marie Saint, que fez 100 anos em julho deste ano, e também da análise de seu primeiro filme, um clássico que completa sete décadas de lançamento também em 2024, estrelado por Marlon Brando, cujo centenário, vejam só, foi em abril passado.

Mas o filme e a magnífica interpretação de Eva Marie Saint (premiada com o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante) nada têm de coincidência. Dirigido por Elia Kazan (que derrotou Alfred Hitchcock e seu “Janela Indiscreta” no Oscar de Melhor Direção), “Sindicato de Ladrões” nos leva, de certa forma, também ao submundo da máfia, quase 20 anos antes de Marlon Brando protagonizar o primeiro “O Poderoso Chefão” (1972). Aqui ele dá vida a Terry Malloy, um operário portuário, ex-pugilista, que luta para enfrentar seu chefe sindical corrupto (Lee J. Cobb) à medida que se apaixona por Edie Doyle (Eva Marie Saint), a irmã de uma das vítimas do grupo criminoso que o próprio Terry ajudou a emboscar fatalmente. Do lado de Edie está o padre Pete Barry (Karl Malden), espécie de bússola moral do filme e responsável por guiar o protagonista para fora da esfera de influência dos mafiosos. Já o inescrupuloso Johnny Friendly tem como seu braço direito justamente o irmão mais velho de Terry, Charley Malloy (Rod Steiger), que vai às últimas consequências para manter o personagem enredado na organização criminosa.

Marlon Brando, claro, entrega uma excelente interpretação, que foi reconhecida com seu primeiro Oscar. O vemos aqui em um registro diferente, muito mais vulnerável. Tanto seu corpo encurvado quanto a voz e o olhar baixos e assustados traduzem sua subserviência a Johnny. Já quando o personagem está perto de Edie, sua postura está mais solta e a voz é mais projetada, indicando a confiança e a segurança que ele sente perto dela. Em vários momentos, quando ele olha para a jovem, a expressividade do ator não deixa dúvidas de que aquele é um personagem profundamente perdido. Apesar do monólogo de Terry no carro com o irmão ser sempre apontado como o ponto alto de Brando neste filme, e uma das mais notáveis interpretações de sua carreira e da história, o ator consegue se sair ainda melhor quando descobre a morte do irmão, demonstrando choque, dor e ódio em igual medida com a voz vacilante e o olhar vidrado. Lee J. Cobb e Karl Malden, como grandes atores que eram, também estão muito bem: o primeiro com o mesmo tom ameaçador e movimentação expansiva que veríamos anos mais tarde em “12 Homens e uma Sentença” (1957), de Sidney Lumet; o segundo, driblando a alta estatura com uma voz mansa, um olhar piedoso e um sorriso epifânico que contrastam frontalmente com o comportamento violento e materialista dos criminosos.



Porém, rivalizando com Brando, ou melhor, colaborando em nível de igualdade com ele, está a surpreendentemente novata Eva Marie Saint. Nascida no dia da independência americana, a atriz de Nova Jersey esteve presente na gênese do cultuado Actors Studio, fundado por Elia Kazan, e é nítido seu treinamento em uma escola de interpretação mais realista. Logo na primeira cena em que ela aparece, lamentando o assassinato do irmão e cobrando, desesperada e furiosamente, a descoberta do responsável, temos uma mostra da força da personagem. Quando tem o primeiro contato com Terry e disputa por um bilhete de trabalho para o pai, também vemos o registro gutural, quase rosnado, que a atriz empresta à personagem para comunicar a altivez de Edie. Ao longo do filme, porém, a personagem vai assumindo posturas mais compassivas e amigáveis, muito bem expostas no rosto menos tenso da atriz e nos sorrisos que Edie começa a dar à medida que entra em um relacionamento com Terry, apesar dos olhos, quase sempre melancólicos em função da morte do irmão, e que estão sempre ali, perceptíveis no rosto multifacetado da intérprete.

Tão expressiva quanto as interpretações é a cinematografia de Boris Kaufman – que, além de Elia Kazan, trabalhou com outros grandes cineastas, como Sidney Lumet e Jean Vigo. O diretor de fotografia pega referências até mesmo da iluminação de filmes noir, especialmente na cena em que Terry e Edie precisam fugir dos bandidos em meio à contra-luz de um beco escuro. Porém, o primeiro momento visualmente marcante acontece bem antes no filme, durante a reunião na igreja, quando o padre reúne os trabalhadores e Edie para tentar conseguir alguma informação sobre quem matou o irmão da personagem. Ao longo da cena, Kaufman e Kazan filmam o religioso em câmera baixa e mantêm sempre o foco nele, mesmo quando outra pessoa mais à frente no quadro está falando, o que ressalta a autoridade do sacerdote e indica ao público (assim como ficará claro aos personagens) que ele é a voz a ser ouvida.

Outra realização notável se dá na cena seguinte, quando Terry e Edie começam a se conhecer melhor. Ambos caminham por um parque em meio à névoa de outono. A câmera os segue, em um longo e bem coreografado tracking shot no qual os atores conversam enquanto andam, param e depois voltam a caminhar à medida que falam. A cena termina em frente a um gradeado que dá vista para as docas no horizonte. Terry e Edie ficam do lado de cá. A névoa se foi, indicando o vínculo mais profundo e sem obstáculos que começou a se formar entre os personagens, mas Terry a leva para casa sem atravessar as grades, em um gesto que denota sua incapacidade de romper o elo que o aprisiona à máfia. Na cena que vem imediatamente depois, Terry e Edie conversam novamente, e o elemento das grades de novo está presente.

"Sindicato de Ladrões" (On the Waterfront, 1954), de Sidney Lumet - Columbia Pictures/Divulgação
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Só vemos Terry atravessar as barras de metal no momento em que, após uma conversa com o padre, ele resolve contar a verdade para a jovem. Temos então, talvez, uma das cenas mais brilhantes que o cinema hollywoodiano já produziu, graças à montagem de Gene Milford e à música do grande Leonard Bernstein. À medida que Edie ouve a confissão do personagem de Marlon Brando, vemos planos cada vez mais fechados em seu rosto atônito, intercalados com a imagem e o som ensurdecedor do apito de um navio próximo. O ruído alto faz as vezes de grito, e a montagem ressalta o choque progressivo da personagem de Eva Marie Saint. Assim que ela começa a correr para fora do quadro, a trilha grandiosa substitui o apito, mantendo a simbologia sonora que diz, também, de um crescendo emocional. Na cena seguinte, vemos Terry literalmente preso, dentro do abrigo dos pombos. Ele conseguiu uma parte de sua liberdade, contando a verdade à amada, mas segue, assim como os pombos, cativo, aprisionado pela máfia.

Somente no final, quando enfrenta Johnny Friendly e se coloca como líder à frente dos outros trabalhadores, o protagonista consegue se desprender do domínio dos bandidos, seguir sua consciência e honrar a memória dos mortos pela máfia. Ironicamente, ele e todos os outros trabalhadores terminam o filme presos, não pelos criminosos, mas pelo portão de um galpão que se fecha. Ou seja, nas entrelinhas, o roteiro de Budd Schulberg e a direção de Elia Kazan não estão representando nenhuma revolução proletária (e nem poderiam, na Hollywood clássica em meio à Guerra Fria), mas sim um reformismo conservador que repudia o crime organizado e a corrupção, mas mantém o capitalismo meritocrático americano e suas estruturas de poder desiguais. Um manifesto comunista a esta altura da década de 50, afinal, seria a última coisa que poderíamos esperar de Elia Kazan. Porém, é irônico pensar que o já citado Boris Kaufman era simplesmente o irmão mais novo do lendário teórico e cineasta soviético Dziga Vertov, o que acaba espelhando (ou sendo espelhado por?) um dos dramas do filme: tal qual Terry e Charley, separados por códigos morais opostos, Boris e Dziga estavam apartados por um oceano de ideologias contrárias. Também é curioso pensar como o próprio Elia Kazan, visto como carrasco pela esquerda americana, imprimiu aqui, em “Sindicato de Ladrões”, uma atmosfera neorrealista que poucos diretores americanos conseguiram ou tiveram coragem de capturar, com fotografia naturalista, uso extensivo de locações e uma trama que ressaltava o desamparo socioeconômico da população mais pobre em plenos áureos anos 50.

“Sindicato de Ladrões” merece seu lugar de destaque na história do cinema. Embora seja moralmente ambivalente, o filme, no final das contas, assim como seu diretor, ousou se aproximar das classes populares muito mais do que a maior parte de seus contemporâneos. Prova disso é, também, a trilha com inspirações jazzísticas de Leonard Bernstein, que abraça o melodrama quando necessário, mas aposta muito mais em sonoridades urbanas que iam se popularizar no cinema com o musical “Amor, Sublime Amor” (1961). O compositor e maestro não está mais conosco, mas sua obra jamais perdeu a força.

O mesmo pode ser dito em relação a Marlon Brando, agora centenário. “Sindicato de Ladrões”, por sua vez, chega aos 70 anos tão potente em seu tema quanto irretocável em sua estética. E Eva Marie Saint, esta completa 1 século de vida podendo se orgulhar de ter feito parte de um dos melhores filmes feitos pela indústria hollywoodiana. Cinco anos depois dessa estreia notável, ela marcaria seu nome no cânone novamente ao estrelar “Intriga Internacional”, de Hitchcock, ao lado de Cary Grant. Hoje, Eva Marie Saint é uma das últimas atrizes vivas dos áureos tempos do cinema americano. Por mais um ano, e desta vez pelo centésimo, podemos dizer que a Era de Ouro de Hollywood ainda não acabou. ■

"Sindicato de Ladrões" (On the Waterfront, 1954), de Sidney Lumet - Columbia Pictures/Divulgação
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Nota:

SINDICATO DE LADRÕES (On the Waterfront, 1954, EUA). Direção: Elia Kazan; Roteiro: Budd Schulberg (baseado no livro de Malcolm Johnson); Produção: Sam Spiegel; Fotografia: Boris Kaufman; Montagem: Gene Milford; Música: Leonard Bernstein; Com: Marlon Brando, Karl Malden, Lee J. Cobb, Rod Steiger, Pat Henning, Eva Marie Saint; Estúdio: Horizon Pictures; Distribuição: Columbia Pictures; Duração: 1h 48min.