"Tipos de Gentileza" (Kinds of Kindness, 2024), de Yorgos Lanthimos - Searchlight/Divulgação
"Tipos de Gentileza" (Kinds of Kindness, 2024), de Yorgos Lanthimos - Searchlight/Divulgação

“Tipos de Gentileza”: O limite entre afeto e abuso nas relações humanas

O questionamento sobre onde começa e onde termina a gentileza, e como ela pode, paradoxalmente, transitar para o abuso, é o tema central no novo filme de Yorgos Lanthimos,Tipos de Gentileza” (Kinds of Kindness). A obra propõe uma reflexão sobre as complexidades das relações humanas, explorando as sutis, mas intensas pulsões de vida e morte que frequentemente se manifestam em vínculos afetivos, através de situações extremas onde personagens estão dispostos a cometer sacrifícios para sanar os sentimentos de perda e luto. Lanthimos nos leva ao limite das noções do que é certo e errado, revelando como a gentileza pode, em certos contextos, ser uma forma disfarçada de agressão. Este jogo entre aparência e realidade faz com que, às vezes, nos esqueçamos de ser gentis conosco mesmos em um esforço para pertencer e manter relações que muitas vezes já não fazem sentido.

O filme é uma antologia dividida em três capítulos sobre personagens que lidam com a perda de complexas relações abusivas, com o elenco recorrente nas três histórias interpretando personagens distintos, com o protagonismo de Jesse Plemons, além de Emma Stone, Willem Dafoe e Margaret Qualley (trio que também atuou na premiada obra anterior de Lanthimos, “Pobres Criaturas” de 2023). A mistura de gêneros e o uso de comédia, suspense, drama e terror psicológico criam um ambiente desconfortável e provocativo que é a marca registrada do diretor.

Diferente de “Pobres Criaturas”, “Tipos de Gentileza” é mais próximo de obras como “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017). O filme mantém um cenário aparentemente realista, mas com situações absurdas e inusitadas, criando uma sensação constante de estranheza e rigidez. A montagem intercala cenas em preto e branco, que indicam momentos fora do presente diegético, como sonhos, lembranças, flashbacks, ou imaginações dos protagonistas. Em uma narrativa que se permite explorar a opacidade do roteiro, deixar finais abertos e não preocupa em se auto explicar, criando assim uma experiência única que desperta identificação e desconforto.



Na primeira (e mais interessante) história, o filme nos apresenta a um homem cuja vida privada é controlada por seu “chefe”, uma relação perdida que levanta questões sobre abuso, livre arbítrio e luto. Provocando reflexões sobre a verdadeira natureza da liberdade, questionando se as decisões que tomamos são realmente espontâneas ou se estamos apenas repetindo comportamentos previamente estabelecidos independente das nossas vontades e impulsos.

O segundo capítulo segue um homem que reencontra sua esposa depois de seu desaparecimento, mas não consegue mais reconhecê-la, gerando um enredo repleto de trauma, paranoia, agressões e até mesmo canibalismo. Esse enredo faz com que o espectador, junto com o personagem, questione sua verdadeira identidade, desafiando nossas percepções de realidade.

O capítulo final explora a história de uma mulher que abandona sua filha ao se unir a uma seita liberal e negacionista, que busca um ritual capaz de ressuscitar os mortos. Este segmento expõe, mais uma vez, temas de perda, abuso e controle do livre arbítrio, colocando a personagem no limite de situações absurdas na tentativa de recuperar o que perdeu.

"Kinds of Kindness" (2024), de Yorgos Lanthimos - Searchlight/Divulgação
Searchlight/Divulgação

A estratégia de repetir o elenco em diferentes papéis ao longo dos três capítulos contribui para a coerência narrativa e estética do filme. Emma Stone e Jesse Plemons oferecem atuações intensas e variadas, potencializando cada um dos diferentes plots, enquanto Willem Dafoe, com sua impressionante versatilidade, interpreta personagens com características semelhantes às de seu papel em “Pobres Criaturas”. Assim como o doutor Godwin Baxter, apelidado de “God” (Deus, pai, criador), Dafoe se destaca como uma figura controladora e manipuladora em cada uma das histórias. Na primeira, interpretando o chefe que calcula cada movimento dos personagens para que tudo aconteça de forma precisa, se aproximando ao trabalho de um criador, diretor de cinema, manipulando os elementos da cena, criando uma mise-en-scène precisa. Na segunda, o pai, se encaixando perfeitamente na proposta do filme, refletindo sobre relações afetivas, num comportamento tóxico entre pai e filha, com a manipulação pela idealização de uma “gratidão” aos pais, por mais controladoras e abusivas que essas relações às vezes podem ser. Na terceira, como líder da seita, como um Deus que pune quando seus discípulos cometem “pecados”. Os tipos de gentileza explicitados no filme estão justamente nesse limite das relações de afeto e controle.

Com uma duração de quase três horas, o filme mantém o espectador interessado do início ao fim, ao dividir a trama em capítulos independentes, proporcionando a sensação de uma maratona de minissérie. Cada história oferece uma resolução inusitada antes de passar para a próxima, como um novo episódio em uma narrativa seriada (ainda que antológica), mantendo o ritmo e a intensidade da narrativa.

“Tipos de Gentileza” é uma experiência completa e extremamente instigante. As atuações impressionantes e a trilha sonora de suspense contribuem para o equilíbrio entre as histórias e os elementos que as conectam, criando uma identidade única para o filme. É uma obra que dividirá opiniões, oferecendo momentos engraçados, tensos, dramáticos, desconfortáveis e polêmicos. Lanthimos entrega uma experiência cinematográfica complexa e equilibrada, que desafia e provoca o espectador a cada uma de suas diferentes histórias. ■

Nota:

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