Após conquistar o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, com o filme “Drive My Car”, o diretor japonês Ryûsuke Hamaguchi propõe, em “O Mal Não Existe”, uma denúncia e uma reflexão sobre a relação entre o homem e a natureza, além das implicações éticas e ambientais do avanço capitalista. Através de uma forma cinematográfica contemplativa e observacional, a narrativa se constrói e critica o desrespeito intrínseco a uma determinada forma de “progresso”, destacando a importância da preservação cultural e ambiental.
Nos primeiros 30 minutos do filme, Hamaguchi nos apresenta Takumi (Hitoshi Omika) e sua filha Hana (Ryo Nishikawa) em sua rotina na vila de Mizubiki, localizada perto de Tóquio. O diretor se dedica a observar com tranquilidade o cotidiano de Takumi: cortando lenha, coletando água e colhendo folhas de wasabi. Essas cenas iniciais são ricas em detalhes que não apenas revelam a vida simples e auto suficiente da família, mas também funcionam como uma metáfora para a preservação dos conhecimentos e tradições culturais passadas através de gerações. A forma como Hamaguchi filma esses momentos, com um ritmo dilatado e um olhar atento para o ambiente e as ações dos personagens, é fundamental para o desenvolvimento do tema central do filme.
O ponto de conflito surge na narrativa quando os habitantes da vila são convocados para uma reunião de apresentação do plano de construção de um retiro, um acampamento, nas proximidades, promovido por uma empresa que busca oferecer à população uma movimentação turística e interativa com a natureza.
Este projeto denominado “glamping” (acampamento glamouroso) é apresentado pela empresa “Playmode”, e durante vários diálogos e discussões surgem termos como “briefing” (informações) e “staff” (equipe), no vocabulário dos representantes da empresa. Em um embate cultural, não apenas pela forma em que o projeto explora o ambiente e a população, mas exemplificado pela linguagem falada americanizada, o filme critica o progresso predatório capitalista que ignora a cultura local e os recursos naturais da região, ressaltando a tensão entre o progresso e a preservação ambiental.
O filme estabelece uma dicotomia clara entre os interesses da empresa e a vida cotidiana de Takumi e Hana. A empresa desconsidera a opinião e a existência da comunidade local, representando um desrespeito não só à natureza, mas também às pessoas que dela dependem, seus estilos de vida e conhecimentos.
Os dois funcionários da Playmode, interpretados por Ryuji Kosaka e Ayaka Shibutani, que foram os apresentadores do projeto para a comunidade, são a ponte de diálogo entre os dois lados. Eles começam a perceber o impacto real do projeto e têm uma leve mudança de perspectiva ao se envolver, vivenciar e observar a realidade e o cotidiano da comunidade. Uma convivência rápida e momentânea, e o olhar humano, que são capazes de perceber o vínculo de respeito e conexão das pessoas com o ambiente. Esse contato promove uma breve empatia e humanidade, contrastando fortemente com a indiferença do verdadeiro dono do projeto, que se mantém distante, apenas participando de reuniões online.
Hamaguchi usa uma forma contemplativa e observacional para destacar a relação entre o homem e o meio ambiente. O filme revela a importância de uma convivência harmônica com a natureza, que a todo momento é ignorada pela empresa. A sequência final apresenta a metáfora do instinto selvagem do cervo ferido que precisa lutar quando não pode mais fugir ou se proteger, e enfatiza que, para todos que dependem e respeitam a natureza naquela região, a luta pela sobrevivência é tanto física quanto cultural, diante de uma grande ameaça.
“O Mal Não Existe” é, acima de tudo, uma crítica a um crime ambiental. Embora o filme demonstre sensibilidade e profundidade em sua abordagem, sua potência se concentra mais em sua denúncia do que na narrativa em si. Hamaguchi, com sua forma contemplativa, faz um apelo urgente para a preservação dos recursos naturais e culturais, convidando o espectador ao olhar humano e à reflexão sobre o tema. ■
filme o mal não existe
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O MAL NÃO EXISTE (Aku wa Sonzai Shinai, 2023, Japão). Direção: Ryûsuke Hamaguchi; Roteiro: Ryûsuke Hamaguchi; Produção: Satoshi Takata; Fotografia: Yoshio Kitagawa; Montagem: Ryusuke Hamaguchi, Azusa Yamazaki; Música: Eiko Ishibashi; Com: Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa, Ryuji Kosaka, Ayaka Shibutani; Estúdio: NEOPA; Distribuição: Imovision; Duração: 1h 46min.
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